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sábado, 30 de abril de 2011

"Férias" em Luanda (Parte II)



Como podem imaginar depois de lerem o post anterior, as “férias” foram seriamente prejudicadas pela circunstância de ter de me apresentar no quartel, quer a meio da manhã, quer a meio da tarde. Não era por acaso que não nos podíamos apresentar às nove, ou às catorze horas. Porém, isso não impedia que fossemos à praia.

Para os residentes angolanos a época de praia ia de Novembro a Abril. No resto do ano era a estação “fria”. Para mim e para muitos outros havia praia todo o ano em Angola, desde que estivéssemos perto de uma. Afinal de contas, as temperaturas, quer do ar, quer da água, continuavam bem mais agradáveis do que na maior parte das praias a que estávamos habituados na Metrópole (que era um dos nomes por que era conhecido em Angola este canto da Europa).



Vista de Luanda a partir dos jardins do Cinema Miramar
Ao fundo, à direita, a Ilha de Luanda; ao centro, a Fortaleza de S. Miguel

Esse mês de Agosto (e parte de Setembro) acabou por ter aspectos divertidos. A minha fractura não me incomodava muito (só andava de braço ao peito quando ia ao DAA), e a minha estada em Luanda coincidiu com a de alguns camaradas que já conhecia e que se encontravam, eles sim, em gozo de férias.

Um deles, o Zé Luís, furriel-miliciano do pelotão independente que estava aquartelado no Vale do Loge (sede do comando do Bart 741), era um madeirense sempre bem disposto, e pronto a pregar inocentes partidas, nas quais nós também colaborávamos, se fosse preciso.

Uma das preferidas dele, que nem sequer era muito original, mas que nos divertia sempre, era pôr o público a bater palmas sem justificação, nos espectáculos a que assistíamos. Havia um programa de variedades - creio que se chamava “Chá da Seis” - que uma estação de rádio transmitia directamente do Cinema Restauração. Num desses espectáculos, a meio da actuação de uma cantora, o Zé Luís levantou-se e começou a aplaudir, no que foi acompanhado pelos três ou quatro camaradas presentes. Poucos segundos depois toda a sala aplaudia.


Cinema Restauração

Lembro-me de outra igual que aconteceu num importante jogo de hóquei em patins que se disputou no recém-inaugurado recinto desportivo do Ferroviário de Luanda, entre esta equipa e outra cujo nome já não recordo. Mas lembro-me de que o recinto estava repleto, com largos milhares de espectadores. E foi então, durante o desenrolar de uma jogada sem relevância especial, que o Zé Luís iniciou os aplausos que puseram toda aquela gente de pé e a aplaudir não se sabia muito bem o quê, perante a surpresa dos próprios jogadores.

Eram malandrices ingénuas que não prejudicavam ninguém. É capaz de ter havido outras malandrices menos inocentes. Mas, confesso: se as houve, ou não tive conhecimento delas ou esqueci-as por completo. Se soubesse onde pára o Zé Luís perguntava-lhe. Mas, depois de ele ter acabado a comissão, antes de nós, nunca mais tive notícias dele.

De quem fui tendo notícias foi do Conjunto Académico de João Paulo, que era, nesse tempo um dos conjuntos musicais com maior êxito nacional. Formado no início da década de 1960 por alunos do Liceu do Funchal, tinha como vocalista Sérgio Borges, que viria a vencer o Festival RTP da Canção de 1970, com a canção “Onde Vais Rio Que Eu Canto” (algumas más línguas que achavam que a melhor era a “Canção de Madrugar”, rebaptizaram-na como “Onde Vais Canto Que Eu Rio”).



"Onde Vais Rio Que Eu Canto", por Sérgio Borges

Este Conjunto fez várias digressões pelo país, que incluíram Angola e Moçambique.

Quis o acaso que nesse Agosto de 1965 as suas actuações em Luanda tivessem coincidido com a minha permanência na cidade. Tendo sido condiscípulo e sendo amigo deles, o Zé Luís acompanhou-os quase sempre, pelo que quase não o vi durante o tempo que lá estiveram. Mas ainda apareceu para me convidar a assistir ao espectáculo deles nos bastidores do Cinema Avis (?). Foi uma experiência interessante, que nunca tinha tido. Eram uns moços simpáticos, que estavam com nervoso miudinho antes da função começar, e muito felizes no final por tudo ter corrido bem.




"Balada A Uma Rapariga Triste", pelo Conjunto Académico de João Paulo 

Esta canção não era, certamente, a mais famosa deste conjunto, mas escolhi-a porque  o vídeo mostra (sem com isso pretender fazer qualquer juízo comparativo) como era diferente a apresentação dos músicos, relativamente aos tempos actuais

Podia continuar a contar muitas outras peripécias dessas semanas em que vimos todos os filmes que passaram nos cinemas da cidade, independentemente da sua qualidade, frequentámos as cervejarias do costume, com algumas diabruras à mistura e, uma vez por outra, acabávamos a noite com umas cervejas no bar do Aeroporto, o único sítio que, em Luanda, ficava aberto toda a noite. Quando isso acontecia, avisava a recepção para me acordarem às dez horas, para poder chegar ao DAA antes das onze.


Terminal do Aeroporto de Luanda

Em meados de Setembro, já curado, regressei a Lucunga. No regresso já não tive direito a viagem na FA. Ou pagava o bilhete na DTA, ou voltava em cima de um camião de uma coluna de reabastecimento. Depois de todas as despesas que tinha feito, e estando no horizonte o custo de uma viagem de avião para gozo de férias no Portugal europeu, marcadas para Outubro, decidi poupar e viajei dois dias em cima de um camião. Maravilha: voltei a deliciar-me com a doçura exótica das mangas da beira da estrada. Na DTA o melhor que conseguiria seriam uns rebuçados que a hospedeira (às vezes  substituída por um hospedeiro) distribuía.



P.S. - Ainda relativamente ao Festival da Canção de 1970 havia na altura quem defendesse que se o Sérgio Borges tivesse cantado a “Canção de Madrugar”, em vez do Hugo Maia Loureiro, teria sido esta a vencer.

Alguns fans do Sérgio achavam mesmo que qualquer uma das canções concorrentes teria ganho se fosse cantada por ele. Exageros, mas lá que ele cantava bem, era um facto.

Deixo aqui a “Canção de Madrugar” cantada pelos dois intérpretes, para que os meus caríssimos leitores possam comparar os méritos de cada um.







Interpretação de Hugo Maia Loureiro




Interpretação de Sérgio Borges

quarta-feira, 27 de abril de 2011

"Férias" em Luanda (Parte I)

Já me referi, aqui, às circunstâncias que levaram à minha evacuação para o Hospital Militar de Luanda em consequência de uma fractura num dos ossos do braço direito.

Volto ao tema, porque julgo que alguns dos que têm a pachorra de passar por aqui (às vezes involuntariamente) podem pensar que as cerca de cinco semanas que passei em tratamento no Hospital acabaram por se converter num período de férias caído do céu. Não os vou desiludir: foram realmente férias, mas em tempo parcial, e que, ainda por cima, eu teria dispensado porque me saíram caras.

Mas, antes de falar das “férias” vou contar um episódio quase anedótico.


Nord Atlas

Passada a guia de marcha e feita a requisição de transporte à Força Aérea (FA), apresentei-me no Aeródromo do Toto em 8 de Agosto de 1965, para seguir viagem para Luanda num desconfortável Nord Atlas.

Para as vagas destes vôos (cuja finalidade principal era o transporte de mercadorias, principalmente os chamados produtos frescos, para reabastecimento da tropa) que tinham sempre muito militares candidatos à viagem de borla - caso em que convinha que se tivessem os contactos certos -, eram estabelecidos graus de prioridade.

Tendo-me sido atribuído o grau de prioridade 1, fui o primeiro a ser chamado para embarcar pelo oficial da FA. Ora, entre os passageiros a aguardar embarque havia um oficial superior (major ou tenente-coronel, já não me recordo com exactidão), que ficou melindrado por ter sido ultrapassado na ordem de embarque por um furriel, membro de uma “casta” (perdão, classe) muito inferior na hierarquia militar.

O oficial da FA, salvo erro um tenente, explicou-lhe com o respeito devido a alguém que, embora pertencendo à classe de oficiais como ele, já tinha chegado a um nível de “casta” superior que, de acordo com os regulamentos e tratando-se de uma questão de evacuação por acidente a prioridade era, neste caso, minha. Com algum desconforto pelo incidente (realmente tanto me fazia entrar em primeiro ou em último, desde que entrasse), acabei por ser mesmo o primeiro a subir para o avião. Mas pareceu-me que o nosso oficial me foi deitando alguns olhares enviesados durante a viagem, que incluiu escalas em Maquela do Zombo e em S. Salvador.

No Hospital Militar a radiografia confirmou a existência de uma pequena fractura e, depois de terem procedido à imobilização do antebraço, fiquei em regime de consulta externa. Isso significava que tinha de providenciar alojamento e alimentação à minha custa. Enquanto em Lucunga tanto o alojamento como as refeições eram por conta do Exército, em Luanda tinha que pagar do meu bolso e, ao contrário do que muitos pensavam, não recebia quaisquer ajudas de custo.

Para fazer face a este rombo inesperado no meu orçamento mensal tive de mexer nas poupanças que ia fazendo na Caixa Geral de Depósitos.


Depósito de Adidos de Angola, em Luanda - Cinema ao ar livre

Por outro lado, não tendo ficado internado tinha, como todos os camaradas na mesma situação, de me apresentar duas vezes por dia – entre as dez e as onze, e entre as quinze as dezasseis horas – excepto sábados e domingos, no Depósito de Adidos de Angola (DAA), passando também a entrar na escala de serviços. Isto é, durante o tempo que estive em Luanda fiz três sargentos de dia à 1ª Companhia, e um sargento de dia à unidade, além de ter sido requisitado três vezes pelo Serviço de Justiça para a função de “escrivão de autos”.

Quando estava de serviço ia um jeep buscar as minhas refeições ao hotel .

Fazer serviço naquela unidade era uma provação que, apesar de tudo, consegui levar a bom termo sem consequências de maior. Alguns dos meus camaradas ficavam mesmo admirados porque, antes das refeições, eu quase conseguia que o pessoal formasse e que seguisse para o refeitório andando de um modo que se assemelhava muito à marcha militar.

A maior parte dos praças aquartelados no DAA tinham ido para Angola em unidades que já tinham terminado as comissões e regressado a Portugal, mas, porque tinham cometido infracções que levaram ao levantamento de autos (*), só poderiam regressar depois de concluída toda a tramitação dos processos, o que, por vezes, chegava a demorar anos.

Neste contexto, a indisciplina era o pão nosso de cada dia. Fazer uma formatura decente era um trabalho digno de Hércules; pô-los a marchar em condições tornava-se mais difícil do que pôr um dirigente político a falar verdade. Na situação em que estavam era-lhes indiferente mais participação menos participação, cujas consequências nunca seriam tão graves como as que iriam resultar das infracções que os tinham levado àquela situação.



Depósito de Adidos de Angola, em Luanda - Edifício do Comando

Durante esta permanência em Luanda registou-se um grave episódio de indisciplina no DAA, a que não assisti, mas que me foi contado por quem o testemunhou. Procurando pôr um pouco de ordem naquela tropa fandanga, o furriel-miliciano que estava de sargento de dia chamou a atenção de um dos soldados que não gostou da “rabecada” e o insultou. Gerou-se um conflito que acabou numa luta em que cada um dos intervenientes tirou o respectivo cinto para servir de arma. Isto perante o gáudio dos restantes militares da formatura, que não intervieram. Só a intervenção de alguns sargentos e oficiais viria a acabar com a feia briga.

Em circunstâncias que serão objecto de outro texto, em tempo oportuno, contarei como em Fevereiro de 1966 voltei ao DAA, durante quase quatro semanas. Mas tive mais “sorte” dessa vez. Estava em tão mau estado físico que o médico do Hospital Militar fez uma declaração em que me declarava inapto para fazer serviços.

(Continua no próximo post, para não cansar)

(*) Os regulamentos determinavam que apenas era vedado o regresso aos militares que tivessem de responder em “auto de corpo de delito”, mas havia quem fizesse outra leitura como se verá lá mais para diante, quando eu contar a minha própria má experiência num caso semelhante, em que um pequeno mas influente grupo, de que fazia parte o meu quarto e último comandante de Companhia, acolitado por alguns oficiais do Comando do Batalhão, tentou tudo para que eu não regressasse com os meus camaradas.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

O Reintegrado


Lucunga
Em meados de Abril de 1965 apresentou-se no Posto Administrativo de Lucunga um jovem negro que afirmava ser natural daquela localidade. Segundo afirmava, teria fugido com os pais para Kinshasa em consequência dos massacres de Março de 1961. Entretanto, resolvera regressar e, sendo cidadão português nascido em Angola, pretendia reintegrar-se na sociedade angolana, decisão que era sempre muito bem vista (e desejada) pelas autoridades.

Tratando-se de um civil ficou sob a alçada do Administrador do Posto, em cujas instalações ficou alojado. Entretanto, e enquanto esperava pelo processamento das formalidades burocráticas necessárias à sua legalização, lentas como era (e continua a ser) da praxe, o jovem tornou-se uma espécie de hóspede de todos nós. Circulava livremente pela localidade, contava episódios da sua vida em Kinshasa, participava activamente nos nossos jogos de futebol, e ia bebendo as Cucas que uns e outros lhe iam pagando na cantina da Companhia.

Embora não houvesse instruções nesse sentido acabávamos, neste caso, por levar à prática a política de Acção Psico-Social que tão cara era, nessa época, às autoridades nacionais e, muito especialmente, ao nosso comandante de Batalhão, tenente-coronel Cabrita Gil, que levava muito (talvez até demasiado) a peito aquela directiva do Governo de Lisboa.

Com alguma frequência realizávamos no edifício do Posto Administrativo renhidos jogos de cartas, durante os quais se bebiam uns “brandies” (já então o Constantino era famoso e barato, na cantina) ou umas cervejolas, conforme os gostos de cada um.

Na tarde do dia 12 de Maio decorria um desses jogos. Além dos jogadores havia, como de costume, alguns assistentes. Um desses assistentes era o jovem negro recém-apresentado que, tendo bebido demais, “desatou a língua” numa loquacidade surpreendente para os presentes, que aproveitaram para lhe puxar pelo verbo, incentivado pelo álcool que ia ingerindo sem se dar conta que falava demais.

E então, para espanto de toda a gente, começou a vangloriar-se de conhecer pormenorizadamente todas as nossas actividades, bem como as  rotinas diárias da Unidade. Sabia onde eram os alojamentos de todos os militares, fossem oficiais, sargentos ou praças. Para finalizar em grande acabou "confessando" que a sua vinda a Lucunga tinha como objectivo, não a apresentação e consequente reintegração, mas antes a finalidade de conhecer os “cantos à casa”. Com o trabalho feito, tinha chegado a hora de partir.

Feita a revelação, saiu disparado, porta fora, em direcção ao campo de futebol e à saída poente da localidade.

De todos os presentes apenas um civil - o comerciante Santos - estava armado. Saiu atrás dele, tirou a pistola do coldre e fez dois disparos. Ao segundo disparo o fugitivo parou, no meio do campo, com as mãos no ar.



Lucunga - Hospital ao abandono

Conduzido à sala de Operações e Comando onde foi sujeito a um longo e particularmente duro interrogatório, pouco revelou de interesse para a nossa actividade operacional. Confirmou que tinha sido enviado pela FNLA para recolher informações, adiantando que fugira porque, precisamente no final desse dia, estaria à sua espera no edifício do hospital (em ruínas, e situado a algumas dezenas de metros da povoação) um pequeno destacamento da FNLA que o escoltaria de volta a Kinshasa, onde apresentaria o seu relatório.

Poucoss dias depois a Rádio Brazzaville confirmaria a estada dos FNLA's no hospital, ao mesmo tempo que aproveitava para fazer a sua propaganda habitual acusando-nos de termos utilizado métodos de interrogatório desumanos. Não estranhámos, porque não era a primeira vez que a nossa Companhia era "elogiada" nos noticiários daquela estação, nem seria a última.

Algumas semanas depois, já quase recuperado do susto que apanhou ao sentir as balas da pistola do Santos a assobiarem junto à cabeça, foi entregue a quem de direito.

Meses mais tarde militares da Companhia que se deslocaram à cidade de Carmona (Uige, actualmente) encontraram-no, casualmente. Parecia ter sido de facto reintegrado, pois trabalhava como contínuo na Repartição de Finanças local e, na ocasião, manifestou grande satisfação pelo reencontro.

Mostrou-se muito contente com o novo rumo que a sua vida tomara. Mas, estaria efectivamente reintegrado? Ainda hoje tenho dúvidas...

segunda-feira, 18 de abril de 2011

In Memoriam - João Francisco Miranda Dias

Conheci o Miranda Dias em 1958. Tínhamos 16 anos e disputávamos, em representação de clubes diferentes, o Campeonato de Lisboa de Andebol na categoria de Juniores. Fomo-nos encontrando nos anos seguintes quando os nossos clubes jogavam entre si, sem no entanto termos estabelecido um relacionamento especial para além dos cumprimentos habituais no final de cada jogo.

Quis o acaso que voltássemos a encontrar-nos em Setembro de 1964 no RAL 1 (Regimento de Artilharia Ligeira nº 1), em Lisboa, aquando da formação do Batalhão de Artilharia 741, acabando ambos integrados na CArt 738. Ele no quarto pelotão, eu no primeiro.

Era o início de uma amizade que, apesar de termos estado muitos anos sem nos encontrarmos, se manteria até à sua morte, em 1994 (se a memória não me atraiçoa).

Na varanda dos "Sete Magníficos". De farda camuflada, o Miranda Dias

Em Lucunga ficámos alojados na mesma pequena moradia - a que chamávamos “Casa dos Sete Magníficos - com três quartos, que foi a residência de sete furriéis-milicianos durante a nossa estadia naquela localidade. Os longos serões à conversa na varanda tiveram como resultado um conhecimento mais aprofundado, bem como a revelação de vários interesses em comum.

Um deles, como já referi, o Andebol levaria a que, conjuntamente com o alferes-miliciano Fagundes também ele praticante da modalidade, viéssemos a “construir” um campo de Andebol onde disputávamos partidas com outros camaradas, alguns dos quais tinham algumas luzes da modalidade que tinham praticado nas aulas de Educação Física do Ensino Secundário, e outros a quem transmitimos o gosto pelo jogo.

Tínhamos uma outra afinidade, que nos levava à prática de uma “malandrice”, que já resumi aqui.


Antes de um jogo de Andebol, na Gabela. O Miranda Dias é o segundo a contar da esquerda

Depois do regresso nenhum de nós voltou a jogar Andebol e, exceptuando um breve encontro ocasional em Novembro de 1967, estivemos mais de 20 anos sem notícias um do outro.

A causa próxima do reencontro teve origem num dos almoços realizados na Ponte da Asseca, durante uma daquelas conversas sempre presentes nos nossos convívios, em que falamos dos camaradas de quem não temos notícias. Nesse almoço de 1990, o segundo em que compareci, veio à baila o Miranda Dias, e um dos presentes tinha ouvido dizer que ele estava doente, mas não sabia pormenores, além de que ninguém sabia onde morava.


Hora de refrescar. O Miranda Dias é o primeiro de pé, à direita

Foi fácil encontrá-lo. No regresso a Lisboa consultei a lista telefónica e lá estava o número do telefone. Liguei-lhe e, ultrapassada a emoção que lhe causou a minha chamada, o Miranda Dias confirmou que se encontrava doente há alguns anos. Uma doença degenerativa - esclerose de placas, também chamada esclerose múltipla – tinha-lhe causado uma progressiva diminuição das capacidades físicas, “atirando-o” para uma cadeira de rodas.

A partir dessa altura e até a morte o levar, poucos anos depois, passei a visitá-lo aos sábados, sempre que tinha disponibilidade. Em média, duas vezes por mês.

No ano seguinte ao nosso reencontro convenci-o a acompanhar-me ao almoço de confraternização do Batalhão, onde foi acarinhado por todos os antigos camaradas. Mais tarde disse-me que aquelas horas de convívio tinham constituído uma das maiores alegrias que tinha sentido nos últimos anos.


O Miranda Dias é o primeiro, de pé, à esquerda

Nas muitas horas de conversa desses últimos anos lamentámos o tempo que, sem qualquer razão, deixámos ir passando sem contactos. Como ele costumava dizer, éramos novos, pensávamos que o Mundo era nosso, e que tínhamos uma vida inteira à nossa frente.

Afinal, nem éramos donos do Mundo, nem a “vida inteira” era assim tão longa.

Infelizmente, no seu caso, não só não foi longa, mas foi, também, injustamente cruel.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O "Circo" da Páscoa

Como tive oportunidade de escrever neste texto o reabastecimento da CArt 738 tinha lugar duas vezes por semana – habitualmente às terças e quintas-feiras - no Toto, a cerca de 70 kms. de Lucunga. Por vezes o Nord Atlas, avião com grande capacidade de carga (uma espécie de C-130 da actualidade), voava para o Toto à sexta-feira em vez de quinta e, consequentemente, também a coluna fazia a deslocação nesse dia.


Nord Atlas (vulgarmente apelidado de "Barriga de Ginguba")

Como consta no referido texto, a deslocação incluía, frequentemente, uma viagem até ao comando do Batalhão, no Vale do Loge.

As más condições das vias de comunicação, bem como a decrepitude do parque de viaturas da Companhia, tornavam as viagens demoradas e cansativas. E o mau estado das picadas a que às vezes chamávamos “estradas” piorava substancialmente durante a estação das chuvas. Nesta época, era frequente a imobilização das viaturas, que derrapavam, só parando quando Deus era servido, ou que, atoladas na lama - e não estando equipadas com guinchos na sua maioria – só depois de porfiados esforços de todos, ora empurrando, ora colocando ramos e troncos de árvores ou outros materiais que tivéssemos à mão debaixo das rodas, voltavam a reiniciar a marcha.

Na CArt 738, grande parte dos veículos que recebemos da Companhia que nos antecedeu estavam imobilizados (as peças de alguns eram utilizadas na reparação de avarias dos que ainda circulavam), além de serem quase todos herança da II Grande Guerra. (Em meados de 1965 recebemos Unimog's novos, quase todos equipados com guinchos, que vieram alterar completamente a situação).

Na sexta-feira 16 de Abril 1965, antevéspera da Páscoa, calhou-me comandar a escolta da pequena coluna de reabastecimento constituída por um velho “jipão” e um camião GMC, da mesma época.


GMC (em mau estado, como a foto, recolhida na Internet)

Esta viagem foi uma das que incluíram um salto ao Vale do Loge. A “estrada” entre o Toto e o Vale do Loge oferecia condições razoáveis se o piso estivesse seco, sobretudo quando comparada com o resto do percurso.

Porém, a meio do caminho de regresso ao Toto começou a cair uma chuva diluviana que em breve transformou o caminho num rio, obrigando os condutores a diminuírem a velocidade. Talvez por isso, o motor do “jipão” começou a dar sinais de sobreaquecimento, pelo que o condutor estacionou a fim de verificar o nível do líquido do radiador. Todavia, descuidado, não esperou que o líquido arrefecesse e, ainda mal tinha tirado a tampa, um jacto de de água fervente saiu do radiador, levando-o a descontrolar-se e a deixar cair a referida tampa, que foi arrastada pela corrente que se formara.

Pouco tempo depois, e como também era habitual naquelas paragens, a chuva parou e o sol voltou. Da tampa do radiador é que não houve mais rasto, apesar das buscas intensivas que fizemos.

Como é evidente, dadas as circunstâncias, o “jipão” não podia prosseguir a viagem. Foi decidido então fazer seguir a GMC com parte do pessoal para o Toto para pedir ajuda, ficando a outra parte de guarda ao veículo imobilizado.


O tal "jipão" (aqui a arrefecer numa pausa de uma caçada)

Da esq. para a dta.: Nunes da Silva, sold.-condutor Tavares (?), Morgado, João Palhares (?), Fonseca e  (?)

Algum tempo depois, chegou uma viatura do PAD (Pelotão de Apoio Directo), que rebocou o “jipão” para o Toto. Entretanto, a CArt 739, aquartelada naquela localidade, já tinha enviado um rádio para Lucunga comunicando a situação.

Passados tantos anos não me recordo dos pormenores, mas não terá sido fácil resolver o problema que só ficou solucionado no dia seguinte, sábado, já tarde, pelo que só partimos para Lucunga no dia 18, bem cedo.

Era domingo de Páscoa, como já ficou escrito, e alguém teve a ideia (ao que parece pouco feliz, como se vai ver) de entrar em Lucunga comemorando, da forma possível, a data. Assim, parámos pouco antes do quartel, e cortámos ramos de palmeira que foram colocados nas viaturas formando arcos, e entrámos no quartel gritando : “Hossana! Hossana! O Senhor ressuscitou!”

De uma maneira geral, o pessoal achou piada. Quem não achou graça nenhuma foi o capitão Rubi Marques.

E lá veio a reprimenda da ordem, com o aviso de que “aquilo” não era um circo.

Mas, pelo menos, não houve “auto das passas”. Talvez tivesse funcionado o espírito pascal.


quinta-feira, 7 de abril de 2011

O auto das passas

Em Lucunga, apesar das nossas ocupações diárias, tínhamos, naturalmente, tempos livres, que eram ocupados de várias maneiras. Já mencionei num texto anterior que dois dos principais passatempos eram o futebol e os jogos de cartas.

Além destes, ouvíamos rádio, líamos livros e jornais (neste caso, A Bola, com atraso de três dias, ou jornais regionais que alguns camaradas assinavam) que iam chegando, e que íamos emprestando uns aos outros. Recordo-me que o romance “Os Insaciáveis”, de Harold Robbins, que me foi enviado como prenda de anos, se encontrava tão maltratado quando me foi devolvido depois de andar de mão em mão, que precisava de voltar para o encadernador.

Os jogos de cartas mais populares eram a sueca e a lerpa. Também se jogava o king, que sendo um jogo de cartas menos conhecido, tinha como praticantes meia dúzia de furriéis-milicianos, aos quais se juntava, com assiduidade, o alferes-miliciano médico, dr. Salazar Leite, já que os outros alferes não seriam aficionados deste jogo (ou, se o eram, não se “misturavam” connosco. O que talvez tivesse uma forte razão de ser, como veremos mais adiante).



Capa do romance "Os Insaciáveis"

Já mencionei em texto anterior como o nosso comandante de Companhia era rigoroso em questões de disciplina (em boa verdade ele era rigoroso e exigente em tudo o que dizia respeito ao seu comando. A começar por ele próprio, justiça se lhe faça). E, neste particular, o dr. Salazar Leite ao sentar-se à mesa de jogo com os furriéis estava a infringir a norma do Regulamento de Disciplina Militar que proibia, expressamente, o convívio entre militares de diferentes classes (ou castas, como costumava dizer um dos meus camaradas). É certo que nos desafios de futebol, ou de andebol, que disputávamos, jogavam todos os militares independentemente do seu posto, sem que o comandante – que chegou a fazer parte da equipa de oficiais e sargentos – levantasse qualquer obstáculo.

O mesmo não acontecia com as actividades de “salão”, como viríamos a saber no dia em que, ao chegar ao nosso alojamento para mais uma partida de king, o dr. Salazar Leite nos disse que o nosso capitão o tinha chamado para lhe dar uma “rabecada”, ao mesmo tempo que lhe comunicava que se continuasse a jogar connosco ordenaria o levantamento de um auto, em consequência do qual não deixaria de o punir com uma “passa”.


Dr. Salazar Leite
(Foto "rapinada" do blogue do BArt 741)

Embora de forma não oficial, os médicos militares tinham uma espécie de estatuto especial. No caso do nosso médico, acho que ele próprio não se considerava bem um militar, detestando mesmo que o tratassem pelo posto, preferindo o “dr.” - que de resto era o modo como o chamávamos - em vez de “alferes”. Fosse pelo tal estatuto ou por qualquer outra razão, não nos pareceu nada preocupado e continuou a jogar connosco durante o tempo que permanecemos em Lucunga, sem que se tivesse concretizado a ameaça.

Porém, o episódio acabou por ser encarado com algum humor. De cada vez que se sentava à mesa para jogar não deixava de dizer, com ironia: “quem sabe se é desta que vou levar com o auto das passas!”

Com o passar do tempo o “auto das passas” ganhou vida própria. A propósito (ou a despropósito) de qualquer coisa que parecesse sair das normas, logo algum de nós soltava o que já era um jargão, dirigido ao autor da “argolada”: “Põe-te a pau se não ainda levas com o auto das passas! ”

domingo, 3 de abril de 2011

Novas de Toronto


Na varanda do "meu" quarto no Hotel Luso, no fim-de-semana que o pessoal do BArt 741 passou em Luanda (19 e 20 de Fevereiro de 1966) a caminho da Gabela

Da esq. para a dta.: Vaz, Fonseca, Azevedo e Morais Soares

Quando o meu telemóvel tocou no dia 25 de Março, depois do jantar, pensei que era mais uma chamada de parabéns pelo meu aniversário. Quando no visor apareceu o nome do Silva Pereira, fiquei surpreendido porque não via como podia ele ter conhecimento da efeméride.

Não tinha, de facto, mas nem por isso aquele telefonema deixou de constituir uma saborosa prenda, pois a surpresa que ele tinha para mim era muito boa. Comunicou-me que acabara de manter uma conversa telefónica com o Edgardo Morais Soares, que foi furriel-miliciano de transmissões na CArt 738, e de quem eu nada sabia desde que, há 44 anos, nos despedimos em Lisboa e ele regressou à ilha de S. Miguel, onde nasceu. Nem sabia eu, nem sabia nenhum dos outros antigos camaradas com quem contacto mais ou menos frequentemente.

O Morais Soares chegara até ao Silva Pereira através do blogue do Batalhão, que lhe serviu também de caminho para este blogue.


Na véspera do Natal, em 1966, durante a inauguração da "Casa do Soldado", construída pelos militares da CArt 738 no quartel da Sétima, na Gabela, com o patrocínio das senhoras do MNF da Gabela

Sentados da esq. para a dta.: Nunes da Silva, Vaz, Sousa, Fonseca, Ferreira da Silva, Ramalho  (também conhecido por "O Maravilhas") e um agente da PIDE, cujo nome não recordo.
De pé, pela mesma ordem: Azevedo e Morais Soares

Entretanto, e depois de uma troca de mensagens por correio electrónico, o Morais Soares telefonou-me e durante cerca de uma hora, que passou célere, tivemos uma animada conversa com alguns momentos de mútua emoção.

Tal como tinha planeado, e falámos disso algumas vezes durante a nossa comissão em Angola, o Morais Soares emigrou para o Canadá em 1968, onde, se a memória não me falha, já residia parte da família da esposa.

Durante todo este tempo o único militar da nossa Companhia com quem contactou foi o 1º cabo do 4º pelotão, Euclides Morais, que também emigrou para aquele país, e com quem se encontrou pela primeira vez, por acaso, em Toronto, onde reside (e onde supõe que o Euclides ainda resida, porque já não o vê há algum tempo).


Jogo de Andebol entre as equipas da CArt 738 e um misto de alunos do Colégio Infante de Sagres e da Escola Industrial e Comercial da Gabela

O Morais Soares foi o árbitro e está ao centro, trajando calças e camisa.

Foi agradável reviver com ele alguns episódios que partilhámos naqueles dois longínquos anos, bem como constatar que a sua memória se mantém em grande forma. Quis saber o que era feito de todos os oficiais e sargentos da Companhia, mencionando os nomes da cada um, tendo identificado quase todos os que estiveram presentes no último almoço, apesar das nossas fisionomias não esconderem a erosão do tempo. Claro que só pude informá-lo acerca daqueles que, de uma forma ou de outra, vão dando sinais de vida.

Mas a melhor das suas revelações foi a firme intenção de estar presente no almoço do próximo ano, em que comemoraremos o 45º aniversário da nossa chegada a Lisboa.


P.S. - Pareceu-me importante dar a notícia do regresso do Morais Soares ao nosso convívio (por enquanto virtual) a todos os que de 1965 a 1967 com ele partilharam o dia-a-dia.

Por esse motivo, o texto que planeava publicar hoje, fica adiado para um dos próximos dias.