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sexta-feira, 30 de março de 2012

Era uma vez um barril de marufo



Mapa do Quanza-Sul - O círculo localiza o Assango

Embora não me recorde da data exacta do episódio que vou contar, sei que teve lugar em Outubro de 1966, porque pouco depois, em Novembro, entrei de férias.

Num fim de tarde, pouco antes de sair do quartel, fui chamado à sala do comando, onde o capitão Soares de Carvalho se encontrava a conversar com o chefe da polícia.

Dado que na véspera, depois do cinema, e de termos ido aconchegar o estômago no Bar Tropical, um pequeno grupo de furriéis de que eu fazia parte, resolveu animar o serão “cantando” de forma desvirtuada uma conhecida canção de Roberto Carlos, supus que alguém se tivesse queixado.

A canção original tinha o seguinte refrão: “Só quero que você / me aqueça neste Inverno / e que tudo mais / vá p'ró Inferno”. A nossa versão era ligeiramente diferente: “Só quero que você / me ofereça um agasalho / e que tudo o mais / vá para o Inferno”. Claro que embora a nossa versão não rimasse, quem ouvia ficava à espera de outra coisa (que era o que nós pretendiamos).

Mas a razão da visita do polícia era outra.

Um militar do recrutamento local, a prestar serviço em Nova Lisboa, mas que estava de férias numa pequena localidade perto da Gabela (não tenho a certeza, mas penso que era o Assango), bebera demasiado marufo na véspera, e a bebedeira dera-lhe para fazer desacatos, ameaçando os brancos ali residentes, que na sua maioria viviam da exploração de pequenos estabelecimentos comerciais (actividade que acumulavam com a produção de café, em pequenas roças), acabando mesmo por partir o vidro da porta de uma das lojas.


Preparando o tronco da palmeira

Como já era habitual nestas situações extraordinárias, fui destacado para me deslocar ao local, averiguar o que se tinha passado e, caso se confirmassem os desacatos, trazer o militar para o quartel para eventual procedimento disciplinar.

Noutra ocasião, esta diligência não me aborreceria especialmente, a não ser pelo facto de não gostar de fazer o papel que caberia à polícia, neste caso, militar. Acontecia, porém, que tinha sido convidado para um almoço de aniversário, que teria lugar numa roça próxima da cidade, justamente no dia seguinte e, com esta missão, não poderia estar presente.

Nestas circunstâncias, o meu estado de espírito não era dos melhores quando saí do quartel, acompanhado apenas pelo condutor do pequeno jeep Willys e por um primeiro-cabo, porque era preciso lugar para trazer o “passageiro”. Fiz um desvio pela roça para informar da minha impossibilidade em estar presente no almoço, bem como para deixar o livro que tinha comprado para oferta, e segui para o meu destino.



Estacas que fixam as folhas do capim que servirão de guia à seiva até à garrafa

Chegado ao “local do crime”, fui “assaltado” pelos comerciantes, cada um a querer contar as malfeitorias do desordeiro bêbado. Ouvi as suas versões, tomei algumas notas e, acompanhado por dois deles, segui para a sanzala à procura do militar, que tinha ido para a “lavra” da família.

Acompanhado pelo soba, lá fui à procura dele, que confessou logo que com a bebida se tinha portado mal, mas que estava muito arrependido, e disposto a pagar o vidro partido.

Por mim o assunto ficava resolvido, mas as coisas não eram tão simples, e eu tinha mesmo de o trazer para a Gabela, onde cheguei a meio da tarde.

O capitão Carvalho mandou um jeep à esquadra da PSP chamar o chefe da polícia, que não demorou.


Lavra de mandioca
(Foto de autor desconhecido)

Fiz o meu relatório e, para meu espanto, o fulano negou tudo o que tinha dito antes. Afirmou que não tinha feito nada de mal, e os brancos lá da terra é que não gostavam dele. Quando o confrontei com as declarações anteriores, disse que não falava bem Português e que eu se calhar tinha feito confusão.

Fiquei furioso. Ainda por cima, o capitão decidiu que eu voltasse ao Assango (?) no dia seguinte para pôr tudo “em pratos limpos”. Mais um dia a almoçar ração de combate, porque eu já na véspera tinha decidido não aceitar o convite dos comerciantes para almoçar.

E aí fui eu, de novo.

Chegado lá, comecei por lhe mostrar, de forma um tanto musculada, que ele tinha feito muito mal em gozar com a minha cara. Depois levei-o até ao soba, e perguntei a este onde escondia ele os barris do marufo, cujo fabrico, na época, era rigorosamente proíbido pelas autoridades.

O marufo é feito com a seiva da palmeira. Começa-se por fazer um corte no tronco e deixa-se escorrer para dentro de um recipiente. Bebido ainda fresco, torna-se uma espécie de sumo agradável. Depois de fermentar, transforma-se uma bebida de elevado teor alcoólico.



Enchendo a garrafa

Começando por negar a existência de marufo, o soba acabou, perante os fortes argumentos que lhe apresentei, por revelar onde escondiam três barris do valioso líquido, e conduziu-me até ao esconderijo, sempre acompanhado pelo militar desordeiro. Expliquei-lhe então que ia ficar sem um barril, devido ao comportamento deste, não só pela desordem que tinha criado, mas também por ter mentido e me ter deixado ficar mal, quando chegou ao quartel.

Disse também ao soba que o militar ficava à responsabilidade dele enquanto durassem as férias, pois não ia levá-lo de novo para a Gabela. E que se eu tivesse de lá voltar por causa dele iam os dois arrepender-se.

Entretanto, reuni com alguns comerciantes e disse-lhes que a desordem não se repetiria, além de que os prejuízos seriam pagos pela família do militar. Embora algo renitentes, pois queriam ver o tipo preso, acabaram por concordar.

De volta ao quartel, expliquei ao capitão Carvalho – que parecia também não estar para se aborrecer mais com o assunto – que as coisas não tinham tido tanta gravidade como parecia inicialmente, que o soba se responsabilizara pelo comportamento do militar, e que os comerciantes com quem reunira, tinham ficado mais calmos.


Hotel Guaraná em ruínas
(Foto de autor desconhecido)

Não foi uma coisa muito bonita, mas a última coisa que me apetecia era andar num vai-e-vem da Gabela para o Assango, ainda por cima numa picada em péssimo estado.

Além de que estava farto da ração de combate, a substituir o meu almoço no Hotel Guaraná.

Nota: As fotos que ilustram o “fabrico” do marufo são da autoria de Afonso Loureiro, e foram publicadas no blogue Aerograma (http://afonsoloureiro.net/blog/)


P.S. - Coloquei mais duas fotografias do almoço em Fátima aqui

sexta-feira, 23 de março de 2012

Encontro em Fátima – Últimas Fotografias



Cumprimento efusivo entre o Silva Pereira e o Morais Soares


Publico hoje seis fotografias relativas ao convívio do BART 741, realizado em Fátima, em 10 do corrente, que me foram enviadas pelo Morais Soares.

Esperava ter já recebido mais fotos, tiradas na ocasião por outros camaradas. Tendo, entretanto, passado duas semanas, fico na dúvida se chegarei a recebê-las. Em caso afirmativo, serão colocadas neste post, que será actualizado à medida que forem chegando.


(Clicar nas fotos para aumentar)


Da esq. para a dta.: (?), Vítor Casimiro, António Passarinho, José Reimão (?), Sebastião Fagundes e Morais Soares


Augusto Fernandes e Morais Soares


Da esq. para a dta.: Mário Abreu, Nunes da Silva, Carlos Fonseca, Morais Soares e Vítor Casimiro



Da esq. para a dta.: Morais Soares com a esposa, Carlos Fonseca, Nunes da Silva, uma senhora que, tal como a que se encontra na mesa ao fundo, julgo serem familiares do Silva Pereira, Mário Abreu e Silva Pereira


Da esq. para a dta.: José Pereira, Morais Soares, Carlos Fonseca e Mário Abreu



As duas fotografias que podem ver abaixo, foram também enviadas pelo Morais Soares.


Abreu, Morais Soares e Bastos


Esta é, provavelmente, a mais desastrada fotografia de grupo tirada nas confraternizações do Batalhão. Julgo que nem um amador desatento conseguiria fazer pior. Segundo me explicaram, quiseram tirá-la na rua para que aparecesse o hotel em fundo. Acontece que o hotel quase não se vê, porque o que aparece reflectido nos vidros são os prédios do outro lado da rua. Por outro lado, o piso tem uma ligeira inclinação no sentido da porta, pelo que quem ficou na fila de trás, está meio escondido. Isto era evitável se a foto tivesse sido tirada na sala da cave, onde foi feita a recepção e onde foram servidos os aperitivos, e que tinha um palco com escadas de acesso, que permitiram dispor as pessoas em planos diferentes.


terça-feira, 20 de março de 2012

Mais fotos do Convívio em Fátima

As fotografias que podem ver abaixo, constituem o último “lote” ainda disponível no meu telemóvel.

Fico, contudo, na expectativa de que alguns camaradas cumpram a promessa feita, e me enviem, para publicação, as que tiraram com as suas máquinas.

Gostava de conseguir identificar todos aqueles que fotografei. Acontece que a minha memória me atraiçoou, pelo que alguns levam um ponto de interrogação. Se me quiserem ajudar a colmatar a lacuna, agradeço antecipadamente.

(Clicar para aumentar as fotos)


À esquerda, o nosso inimitável clarim, José Alves; à direita, (?)


À esquerda o Alexandre; à direita, (?)


O Alexandre conversa com o Augusto Fernandes, que tivemos a sorte de ter como "patrão" da enfermaria.


O Morais Soares "patrão" das Transmissões, que, acompanhado pela esposa, nos deu a alegria de comparecer pela primeira vez nos nossos encontros. Pudera, Toronto fica longe!


De todos os camaradas desta mesa apenas reconheço o José  Reimão (creio que era do 2º pelotão)


O Nunes da Silva, o Alexandre e o Abreu, à conversa com o bejense José Pereira (que não ficou na foto porque não gosta de ser fotografado e já tinha tirado muitas fotos, segundo dizia)


O Morais Soares e o Abreu (este continuando a conversa com o José Pereira, que desta vez não se escondeu a tempo)


A esposa do Morais Soares conversando com o Augusto Fernandes


Apesar de atarefado com a organização (será que teve tempo para almoçar?), o Silva Pereira num momento de boa disposição 


O José Pereira (aqui sem fuga possível) e o Morais Soares


O Duarte e a esposa, presenças habituais nos encontros do Batalhão


O Passarinho (que paciência a dele para nos aturar na messe) com esposa, presença constante nos últimos anos.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Convívio em Fátima - Mais Fotos


O Carlos Cristóvão, foi furriel-miliciano na CCaç 715, que estava aquartelada na Missão do Bembe, situada a cerca de 50 kms. de Lucunga.

Devido à forma fidalga (a que já me referi aqui) como fomos recebidos pelo pessoal desta Companhia, criaram-se laços de amizade que, nalguns casos, perduraram ao longo do tempo, com realce para o caso do Cristóvão que quase todos os anos nos dá o prazer da sua presença nas nossas confraternizações.

Também este ano esteve presente em Fátima, e são dele as fotografias que hoje publico.



Pereira, Nunes da Silva (encoberto), Fonseca e Fagundes


Pereira, Nunes da Silva e Fagundes


Pereira, Carlos Cristóvão, Nunes da Silva e Fagundes


Passarinho, Fonseca e Duarte

Passarinho, Fonseca, Duarte e Lobo (mais conhecido por Cigano - ele não se importa - que está quase irreconhecível. Lembram-se como ele era magricela?)


Fagundes, Casimiro, Pereira e Fonseca


Pereira, Casimiro, Fonseca, Morgado e Fagundes


Sentados: Morgado, Fagundes, Casimiro e Pereira
De pé: Carlos Cristóvão e Fonseca

quarta-feira, 14 de março de 2012

BART 741 - Convívio em Fátima


O bolo comemorativo não podia faltar
(Clicar nas fotos para aumentar)

No sábado passado compareci ao convívio anual do Batalhão de Artilharia 741, que teve lugar em Fátima, tendo vivido um dia quase perfeito.

O “quase perfeito” foi, no que me diz respeito, ensombrado por algumas ausências da CArt 738. Nuns casos trata-se, infelizmente, de camaradas que partiram para a viagem que não tem regresso, e cuja memória permanecerá para sempre entre nós. Noutros, os motivos para as ausências radicaram em impedimentos vários, e, dentre todas, permito-me destacar a do Coronel Rubi Marques – que marcou todos quantos, em Lucunga, tiveram a honra de servir sob o seu comando - e que, convalescente de uma maleita recente, não deixará por certo de nos dar o prazer da sua presença no próximo convívio.

Parece-me extraordinário que, 45 anos depois de regressarmos de Angola, e num clima de crise nacional – real ou psicológica – ainda seja possível reunirmos cerca de 300 pessoas entre antigos camaradas e, nalguns casos, familiares próximos. Isto prova quão fortes foram 0s nós da amizade e do companheirismo que desenvolvemos em tempos particularmente difíceis.

Quero também salientar o enorme prazer que tive em reencontrar, tantos anos depois, o Morais Soares, furriel de transmissões, que, acompanhado da esposa, se deslocou expressamente do Canadá para estar presente neste dia especial.

Outros casos dignos de registo são os do antigo comandante do 2º pelotão, alferes Francisco Morgado, que há mais de 20 anos não comparecia nestes eventos, do Mário Abreu, furriel do 3º pelotão, que ultrapassou alguns obstáculos de ordem logística para estar presente, e ainda do meu companheiro de quarto em Lucunga, Nunes da Silva (que parece que, tanto tempo depois, já relevou a minha desarrumação permanente, que tanto perturbava a ordem que ele procurava manter), que há meia dúzia de anos tinha deixado de comparecer.

Por último, mas não menos importante, quero agradecer a impecável organização, a cargo do Silva Pereira, como vem sendo hábito.

P.S. - Publico a seguir algumas das fotos que fiz (com telemóvel) durante o convívio. Nos próximos dias publicarei mais algumas, incluindo um lote que me foi enviado pelo Carlos Cristóvão, da CCaç 715, que esteve na Missão do Bembe, e que tem sido presença habitual nos nossos encontros. 





Francisco Morgado, Sebastião Fagundes e Vítor Casimiro



Um aspecto parcial da sala de jantar



Mário Abreu, Morais Soares, esposa do Morais Soares e, meio encoberto, o Nunes da Silva


Outro aspecto da sala, meio vazia (tempo de conversa enquanto não chegava a hora do lanche)


Sentados os comandantes de pelotão da CArt 738 (Morgado, Fagundes, Casimiro e Pereira); de pé, o Carlos Cristóvão da CCaç. 715


Ao centro, em mangas de camisa, o Silva Pereira (o único de nós que passou o dia a trabalhar)


Na hora de partir e distribuir o bolo
Silva Pereira (encoberto), José Pereira, Morais Soares e Mário Abreu 

segunda-feira, 5 de março de 2012

Cabritos à boleia


Igreja da Quibala

Ao longo dos cerca de 90 quilómetros que separavam a Gabela da Quibala, havia extensas planícies onde pastavam numerosos rebanhos de gado caprino, que tinham a particularidade de parecerem estranhamente abandonados, sem qualquer pastor à vista. Cada rebanho tinha muitas centenas (quiçá, milhares) de animais, sem nenhum ser humano, nem sanzalas, nas proximidades.

Uma vez por semana – salvo erro, à quinta-feira – saía da Gabela um jeep que transportava o correio militar até à Quibala. Se bem me lembro, o transporte era feito em forma de estafeta: camaradas do comando do Batalhão traziam o correio até à Gabela, onde a pasta era passada para a nossa Companhia, que se encarregava de a levar até à Quibala, onde era entregue a uma nova equipa.

É possível que também eu tenha feito esse serviço alguma vez, mas, na verdade, não tenho disso a menor recordação.

Algum tempo depois do início deste serviço, no regresso de uma das viagens, um dos “passageiros” do jeep era um cabrito, já “falecido” à chegada, que acabou nas mãos do nosso cozinheiro africano, que fez dele uma excelente caldeirada à angolana, como só ele sabia fazer, para delícia da dúzia de comensais (que o tamanho do animal não dava para mais). De comer, lamber os dedos e chorar por mais.

A partir dessa semana, e durante alguns meses, não houve viagem em que não aparecesse um cabrito a “pedir boleia”.


Caldeirada de Cabrito

E, de caldeirada (quase sempre), ou no forno, acabava por constituir um suplemento às ementas rotineiras, de se lhe tirar o chapéu.

Porém, afinal os rebanhos não estavam tão abandonados como nos parecia. E, num belo dia, apareceram no quartel o chefe da polícia local, o administrador de posto da zona dos rebanhos e um soba, representante dos proprietários, a queixarem-se de que a tropa andava a fazer “mão baixa” nos cabritos, todas as semanas, com real prejuízo para os donos.

Duvido que alguém no quartel ignorasse o que se passava com os nossos petiscos, que até eram confeccionados na cozinha do rancho geral. Mas a verdade é que o capitão Carvalho, comandante da Companhia, mostrou-se surpreendido pela queixa, e já falava em instaurar processos disciplinares aos responsáveis, que, de facto, éramos todos os furriéis a prestar serviço na Gabela. Uns por darem “boleia” aos animais, os restantes porque também abancavam à mesa do petisco.

Acabou por prevalecer uma proposta do chefe da polícia, que a todos pareceu sensata: estabeleceu-se um preço, mais do que razoável do nosso ponto de vista, por cada cabrito, calculou-se o número de cabritos desviados (ia a escrever devorados), tendo em conta o número de viagens efectuadas, e cada um dos comensais pagou a sua parte.

Ainda assim, todos, ou quase todos, achámos que os pitéus valeram bem, quer os escudos despendidos, quer a rabecada do capitão.


P.S. - Já aqui tinha escrito antes que não há melhor forma de cozinhar cabrito do que de fazê-lo de caldeirada à moda de Angola? Um pitéu!