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quinta-feira, 7 de abril de 2011

O auto das passas

Em Lucunga, apesar das nossas ocupações diárias, tínhamos, naturalmente, tempos livres, que eram ocupados de várias maneiras. Já mencionei num texto anterior que dois dos principais passatempos eram o futebol e os jogos de cartas.

Além destes, ouvíamos rádio, líamos livros e jornais (neste caso, A Bola, com atraso de três dias, ou jornais regionais que alguns camaradas assinavam) que iam chegando, e que íamos emprestando uns aos outros. Recordo-me que o romance “Os Insaciáveis”, de Harold Robbins, que me foi enviado como prenda de anos, se encontrava tão maltratado quando me foi devolvido depois de andar de mão em mão, que precisava de voltar para o encadernador.

Os jogos de cartas mais populares eram a sueca e a lerpa. Também se jogava o king, que sendo um jogo de cartas menos conhecido, tinha como praticantes meia dúzia de furriéis-milicianos, aos quais se juntava, com assiduidade, o alferes-miliciano médico, dr. Salazar Leite, já que os outros alferes não seriam aficionados deste jogo (ou, se o eram, não se “misturavam” connosco. O que talvez tivesse uma forte razão de ser, como veremos mais adiante).



Capa do romance "Os Insaciáveis"

Já mencionei em texto anterior como o nosso comandante de Companhia era rigoroso em questões de disciplina (em boa verdade ele era rigoroso e exigente em tudo o que dizia respeito ao seu comando. A começar por ele próprio, justiça se lhe faça). E, neste particular, o dr. Salazar Leite ao sentar-se à mesa de jogo com os furriéis estava a infringir a norma do Regulamento de Disciplina Militar que proibia, expressamente, o convívio entre militares de diferentes classes (ou castas, como costumava dizer um dos meus camaradas). É certo que nos desafios de futebol, ou de andebol, que disputávamos, jogavam todos os militares independentemente do seu posto, sem que o comandante – que chegou a fazer parte da equipa de oficiais e sargentos – levantasse qualquer obstáculo.

O mesmo não acontecia com as actividades de “salão”, como viríamos a saber no dia em que, ao chegar ao nosso alojamento para mais uma partida de king, o dr. Salazar Leite nos disse que o nosso capitão o tinha chamado para lhe dar uma “rabecada”, ao mesmo tempo que lhe comunicava que se continuasse a jogar connosco ordenaria o levantamento de um auto, em consequência do qual não deixaria de o punir com uma “passa”.


Dr. Salazar Leite
(Foto "rapinada" do blogue do BArt 741)

Embora de forma não oficial, os médicos militares tinham uma espécie de estatuto especial. No caso do nosso médico, acho que ele próprio não se considerava bem um militar, detestando mesmo que o tratassem pelo posto, preferindo o “dr.” - que de resto era o modo como o chamávamos - em vez de “alferes”. Fosse pelo tal estatuto ou por qualquer outra razão, não nos pareceu nada preocupado e continuou a jogar connosco durante o tempo que permanecemos em Lucunga, sem que se tivesse concretizado a ameaça.

Porém, o episódio acabou por ser encarado com algum humor. De cada vez que se sentava à mesa para jogar não deixava de dizer, com ironia: “quem sabe se é desta que vou levar com o auto das passas!”

Com o passar do tempo o “auto das passas” ganhou vida própria. A propósito (ou a despropósito) de qualquer coisa que parecesse sair das normas, logo algum de nós soltava o que já era um jargão, dirigido ao autor da “argolada”: “Põe-te a pau se não ainda levas com o auto das passas! ”

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