O Vaz e a esposa no último encontro em que esteve presente, em Couto de Esteves - Março de 2010
Faz
hoje um ano que morreu o Vaz. E há um ano que planeio escrever um
texto em que fale da nossa amizade, que começou quando ele chegou ao
RAL 1, para ser incorporado no BArt 741, passando a fazer parte da
minha Companhia – a CArt 738 – com o posto de furriel-miliciano,
tendo a especialidade de vagomestre.
Há
um ano que venho adiando esse momento, porque continua a custar-me a
acreditar que ele nos deixou tão prematuramente.
Decidi
que, bem ou mal, chegou o dia de o fazer.
Está
enraizado nos nossos costumes o hábito de tornar toda a gente
“santa” depois de morrer. Não é isso que pretendo fazer neste
post, nem, estou certo, o Vaz gostaria que eu o fizesse.
Era
um homem com qualidades e defeitos, como todos nós. Acontece que,
apesar da sua juventude, não foi difícil perceber que tinha mais
qualidades e menos defeitos do que a maioria dos seus camaradas, onde
naturalmente me incluo. A começar por uma maturidade e bom senso,
raros para a sua idade, que lhe possibilitavam exercer, com êxito, o
papel de moderador, em situações de conflito, que se geram
facilmente em ambientes “fechados”, como aquele em que vivíamos
no Norte de Angola.
Momentos de boa disposição em Lucunga
Da esq. para a dta.: O autor do blogue, Vaz e Miranda Dias
Outro
aspecto em que fomos afortunados com a sua inclusão na nossa
Companhia, teve a ver com a forma como ele, enquanto responsável
pela alimentação do pessoal, desempenhou essa função.
Todos
os militares que, durante esses anos em que quase não houve nenhum
português jovem que não tivesse passado por África, em cumprimento
de comissões de serviço militar, ouviram, ou sentiram na pele – e
sobretudo no estômago – histórias de mau passadio, porque alguns
(demasiados) vagomestres criavam esquemas para aumentar o seu pecúlio
pessoal, em detrimento da qualidade e quantidade da alimentação
fornecida.
Dizia-se
à boca pequena que, nesses esquemas, tinham cumplicidades de outros
responsáveis com quem dividiam os lucros indevidos.
Na
CArt 738, excluindo a frequência com que o arroz entrava nas
ementas, cuja responsabilidade cabia aos fornecimentos da Manutenção
Militar, a satisfação com a alimentação era geral. Todos os que
lá estiveram se recordam com certeza, de que, a partir de certa
altura, quando todos estávamos fartos das detestáveis rações de
combate que levávamos quando íamos para o mato, o Vaz providenciou
a confecção de refeições alternativas, que podiam não ter os
requisitos calóricos e vitamínicos das rações, mas que todos nós
preferíamos.
Gabela, no jardim da piscina
Da esq. para a dta.: Rodrigues, Vaz e o autor do blogue
Alimentar
todos os dias 163 pessoas não era uma tarefa fácil. Sei-o por
experiência própria.
Quando,
em 1966, já na Gabela, o Vaz veio de férias, pediu-me que o ficasse
a substituir. Confesso que tentei esquivar-me, argumentando que não
tinha a menor ideia do complexo funcionamento da “coisa”, e que,
por certo, havia camaradas mais talhados para a função. Desde logo
o 2º sargento Ferreira da Silva, que, sendo do quadro, conhecia,
praticamente, todos os meandros do funcionamento do quartel; ou mesmo
o Rodrigues, que sendo embora miliciano como eu, tinha já duas
comissões e maior experiência.
Insistiu,
evocou a nossa amizade, e acabei por aceitar.
Durante
as duas semanas que antecederam a sua partida, fui a sombra do
mestre em que ele se tornou, a procurar adquirir o máximo de
experiência, de forma a poder levar a barca a bom porto. Teve uma
paciência incrível, a esclarecer todas as minhas dúvidas, e quase
conseguiu dar-me uma equivalência à sua especialidade.
Confesso,
porém, que além de tudo o que ele me ensinou, foi muito importante
para o modo como consegui manter a normalidade possível na cozinha
e no refeitório, a colaboração do 1º cabo cozinheiro, de cujo
nome, infelizmente, não me recordo.
Quando,
em consequência do acidente a que já me referi em posts anteriores,
fui evacuado para o hospital em Luanda, sem ter regressado à
Gabela, foi o Vaz que se encarregou de recuperar e de providenciar o
transporte de todos os meus haveres que lá tinham ficado.
Depois
de regressarmos, finda a comissão, estive cerca de 20 anos sem
estabelecer qualquer contacto com ele. Aliás, o mesmo viria a
acontecer com a generalidade dos outros camaradas. As excepções
contam-se pelos dedos das mãos, e talvez ainda sobre algum, e constituíram sempre encontros ocasionais, sem continuação.
Quando
se iniciaram os convívios do Batalhão, ainda na década de 1980,
retomei os contactos com muitos dos antigos camaradas. Mas com o Vaz,
que até ao ano passado nunca tinha falhado um encontro, que me
lembre, os contactos passaram a ser mais frequentes. Além das
conversas telefónicas que mantínhamos de forma mais assídua, fui
fidalgamente recebido na sua casa, em Guimarães, tendo-o também
recebido na minha casa, em Lisboa.
Só
nunca se concretizou a sua, repetidamente prometida, visita à minha
casa no Algarve.
Só
eu sei quanto o lamento!