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sábado, 29 de janeiro de 2011

Água e Lenha

Uma semana depois de chegarmos a Lucunga, a Companhia que fomos render partiu, e ficámos entregues a nós próprios.

De acordo com a rotina diária estabelecida pelo comandante de Companhia, havia um pelotão a fazer serviço externo (operações de um dia, colunas de reabastecimento, escoltas); outro pelotão estava de piquete para qualquer emergência; contudo, os seus elementos não ficavam inactivos: colaboravam na reabilitação dos alojamentos e mais tarde na sua manutenção, capinavam, abriam valetas, etc.; havia ainda o "pelotão de dia ao quartel", que tinha como função garantir a segurança e a limpeza do quartel, bem como o fornecimento de água e lenha;  e, finalmente, um último pelotão que estava de folga. Normalmente tinha estado em serviço externo na véspera.

Quando se realizavam operações que duravam vários dias, faziam-se os ajustes necessários ao bom funcionamento da unidade.

Os fornecimentos de água e lenha eram diariamente garantidos por uma secção do "pelotão de dia ao quartel".

Alguns elementos da equipa da água 
Da esq. para a dta.: Carlos Fonseca, Nunes da Silva, João Palhares,, Brandão Pacheco e Casimiro Cerqueira

O transporte de água era feito em tambores de 200 litros - 8 de cada vez - a partir de um ribeiro que passava a cerca de 5 quilómetros do quartel e, para garantir que todos  os depósitos instalados nos telhados dos alojamentos seriam abastecidos - embora nem sempre em toda a sua capacidade -, era preciso fazer pelo menos cinco viagens. 

Tinham prioridade na distribuição da água a cozinha do rancho geral e a enfermaria, onde era previamente tratada toda a água que bebíamos. Exceptuando estes dois casos, não havia uma regra para a distribuição. Cada comandante de secção decidia a seu modo, embora houvesse tendência para cada um puxar a brasa à sua sardinha. Isto é, primeiro a sua casa, a seguir a messe de oficiais e sargentos (onde ficavam os alojamentos dos oficiais, com excepção do comandante), e depois a moradia dos outros furriéis e o pessoal do respectivo pelotão.

Na prática, seguia-se sem muitos o saberem, a velha máxima da Academia coimbrã; "para os amigos, tudo;  para os inimigos, nada; para os outros, cumpra-se a lei".

Isto, salvaguardando o facto de não termos inimigos na Companhia.

Cortando a lenha
Da esq. para a dta.: Albino Marinho(?), Manuel Lopes, Carlos Fonseca e Brandão Pacheco

Alternando com o transporte de água, era preciso também apanhar, cortar e transportar lenha, que era o combustível utilizado na cozinha do rancho geral. 

Encontrávamos lenha ao longo da estrada, ora no sentido Lucunga-Bembe, ora no sentido Lucunga-Damba. A estrada estava ladeada por grande número de árvores, cujas folhas constituíam um petisco muito apreciado pelas manadas de elefantes que existiam naquela zona. Para as comerem derrubavam os ramos com a tromba, deixando-os caídos no chão depois de terminada a sua refeição. Entretanto, secavam, pelo que apenas tínhamos o trabalho de os cortar para caberem no atrelado onde os transportávamos.


Manada de elefantes

Quis o acaso que tivesse calhado à minha secção fazer o primeiro transporte de água e lenha sem a protecção dos "anjos da guarda" da Companhia que tínhamos rendido. Ainda por cima, todos os quartéis do Norte tinham entrado em estado de prevenção rigorosa para prevenir uma eventual acção em grande escala do inimigo, para assinalar o 4 de Fevereiro de 1961, data que é considerada como tendo sido o início da guerra. Os do outro lado, sempre bem informados, não ignoravam que havia maçaricos em Lucunga, e podiam querer aproveitar-se da nossa inexperiência. 

Não me recordo quantas viagens fiz nesse dia, mas sei que, até terminar a tarefa, era grande a minha apreensão, pelo receio  de que fossemos alvo de uma emboscada. Recordo-me que, atendendo a que o local onde enchíamos os tambores era propício a um ataque, ocupei a maior parte da secção a fazer a segurança de um e do outro lado do ribeiro, mantendo-me sempre alerta. 

A recolha da lenha era feita em campo aberto, e aí a segurança foi menos apertada, mas sem descurar os cuidados devidos.


Hora do banho

Em baixo, da esq. para a dta.: José Pereira  e José Mourão
Em cima, pela mesma ordem: Carlos Fonseca, Nunes da Silva e Miranda Dias

Contrastando com as cautelas referidas, alguns meses mais tarde, quando estávamos de folga, íamos quatro ou cinco com a secção encarregada do fornecimento de água e, enquanto eles voltavam ao quartel para descarregar, ficávamos, sozinhos, a nadar até eles voltarem, numa manifesta falta de prudência. 

No nosso caso, nunca houve problemas, mas este tipo de situação que resultava de um  excesso de confiança que os verdes anos explicavam, mas não justificavam, deu muito mau resultado noutros locais.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Lucunga


Lucunga

No dia seguinte à nossa chegada a Lucunga, teve início a "passagem de testemunho" da Companhia que íamos render,  para a nossa.

Os furriéis com as especialidades de transmissões, enfermagem, reabastecimento (vagomestre) e mecânico-auto, começaram a conferir e a receber o material das respectivas áreas.

De uma maneira geral havia falhas  que a habilidade dos "mais experientes" ultrapassou. Neste particular, deixo aqui o relato da recepção de duas cozinhas de campanha.

O nosso vagomestre estranhou que as cozinhas não se encontrassem no mesmo local, mas o camarada que ia ser rendido deu-lhe uma explicação qualquer que ele aceitou como boa. Depois de receber e conferir os utensílios de uma das cozinhas, deslocaram-se para o local onde estava a outra. Mais tarde percebeu que o tempo excessivo que demoraram a chegar a esse local tinha como finalidade dar tempo a que alguém, por outro caminho, levasse peças de uma cozinha para a outra, onde estavam em falta. 

Um ano depois seria a sua vez de ser "habilidoso", fazendo o mesmo. 

No posto de transmissões, ingénuo e de boa fé, o nosso camarada conferiu o material constante da lista que lhe apresentaram, sem confirmar se todos os rádios estavam operacionais. Na realidade, a maior parte estava avariada e nunca viria a funcionar, tendo sido muitas as vezes em que fomos para operações sem rádio ou, levando-o, não funcionava impedindo qualquer espécie de contacto com o posto em Lucunga, ou com outros pelotões.



GMC

O parque automóvel não estava melhor. Dos quatro "jipões", do tempo da II Guerra Mundial, só dois circulavam; os outros dois apenas serviam para fornecer peças. Das duas camionetas GMC (também originárias da II Guerra), só uma circulava, e muitas vezes as condições mecânicas eram deficientes. Dos pequenos "jipes" Williams (alguns da mesma época dos anteriormente citados, com duros estofos de lona), só alguns andavam .

Esta situação seria alterada alguns meses depois com a chegada de seis modernas viaturas Unimog, algumas equipadas com guinchos, de grande utilidade nas picadas lamacentas e escorregadias em que circulávamos.

Embora as condições de habitabilidade fossem razoáveis, algumas moradias  necessitavam de obras de reabilitação e, nalguns casos, nem casas de banho tinham.

Houve, por isso,  necessidade de meter mãos à obra, sem prejuízo das operações militares no mato (e no capim, claro). Mãos que foram as dos que na vida civil eram pedreiros, carpinteiros, electricistas, etc., além dos que se tornaram "profissionais" do ramo,  fazendo um apressado "curso de formação " (sem direito a subsídios). 

O dinheiro para o material também apareceu. As empresas fornecedoras de combustível tinham, com periodicidade regular, uma "gentileza" para com as unidades, cujo valor variava em função  dos fornecimentos efectuados. Não sei, nem nunca me interessou saber, como eram utilizadas essas "gentilezas" nas várias unidades que ao longo de 13 anos combateram em Angola. Sei que durante a nossa  permanência em Lucunga, sendo comandante de Companhia o capitão Rubi Marques, essas verbas se destinaram a melhorar as nossas condições de vida. 




Cafeeiros no Amboim, Quanza-Sul

Obtivemos outra fonte de rendimento com a venda de café em grão. A nossa zona tinha muitas fazendas de café, abandonadas. Porém, todos os anos os cafeeiros floriam e davam fruto. Também aí encontrámos outra forma de aumentar as receitas. Depois de maduro apanhámos uma boa parte desse café, aproveitando o tempo que as operações ou o cumprimento de outros serviços nos deixavam livres. Secámo-lo num terreiro improvisado, e depois vendêmo-lo.

Quando saímos de Lucunga em Fevereiro de 1966, todos os alojamentos tinham boas condições de habitabilidade, que incluíam casas de banho.

Na varanda da "nossa casa"

Da esq.para a dta.: Mourão, Luís de Matos, Miranda Dias, Nunes da Silva e Carlos Fonseca 
(Faltam os residentes Mário Abreu e Azevedo)

Fiquei alojado numa pequena moradia (dois quartos, uma sala, uma cozinha e uma casa de banho) com uma varanda, juntamente com mais seis camaradas que aqui recordo: Miranda Dias, já falecido, Nunes da Silva (meu colega de quarto), Mário Abreu, Joaquim Almeida (que viria a ser transferido para outra unidade, tendo sido substituído pelo Luís de Matos) Mourão e António Azevedo. A sala espaçosa foi transformada num quarto, com três camas. A cozinha era a nossa arrecadação.

Como éramos sete, logo alguém baptizou a casa como moradia dos "Sete Magníficos", título de um filme famoso nessa altura.

Começou assim uma nova etapa que duraria treze meses, com dias bons, dias maus e outros assim-assim. Mas nenhum de nós era o mesmo quando, 13 meses depois, partimos rumo ao Quanza-Sul e a uma vida mais descansada.  

sábado, 22 de janeiro de 2011

A Caminho de Lucunga




Caxito  (Foto de Luís Boleo)

Na viagem de Luanda para Lucunga (no caso da CArt 738, já que as restantes unidades tinham, outros destinos ), cerca de 500 kms. que demoraram dois dias a percorrer, tivemos como meio de transporte uma coluna de camiões de reabastecimento.

A primeira paragem para desentorpecer as pernas teve lugar no Caxito, a norte de Luanda. À beira da estrada havia um grande número de vendedores de cocos, bananas e outros frutos, que aproveitaram para fazer negócio. Foi a primeira vez que comi coco, e até hoje fiquei freguês de tudo o que seja confeccionado com aquele fruto.

Aproximava-se a hora do almoço em que nos iríamos "deliciar"com a primeira das muitas rações de combate que no futuro nos serviriam de refeição quando, ao  passarmos num local em que a estrada se “afundava” entre duas encostas densamente arborizadas, a coluna parou e todo o pessoal recebeu ordem para fazer uma incursão na mata.  

Ninguém estava à espera desta "mini-batida" e o receio daquele primeiro contacto com o que se julgava ser um ambiente parecido com a realidade que nos esperava, gerou alguns receios. No que diz respeito à minha secção não consegui sequer que a progressão se fizesse de acordo com os manuais (que de resto iriam ser muitas vezes esquecidos ao longo dos 13 meses seguintes, por não estarem adequados à realidade que nos esperava) e o mesmo se passou com a maioria das outras secções. Enquanto comandante de secção devia colocar-me no terceiro lugar da fila, mas a verdade é que não consegui que alguém avançasse à minha frente. Quando eu parava, parava tudo. Pareciam uma ninhada de pintos atrás da mãe-galinha. 

Para que conste: eu também não ia muito à vontade. Acontecia que, nesta, como noutras ocasiões, não podia era mostrá-lo.

Naturalmente, a ideia da entrada na mata não passava de um exercício de ambientação que não oferecia qualquer perigo. Porém, quem é que acreditava nisso? O cenário era um pouco assustador. Mas era só cenário.


Mangueira

A partir de certa altura, a estrada era ladeada por árvores que nos eram desconhecidas. Tratava-se de mangueiras, e o seu fruto, a manga, com um paladar tão especial, conquistou-nos de imediato. Gostei tanto que achei que a manga devia ter feito parte do pomar do Paraíso, e que teria sido com ela, e não com a maçã, que Eva seduziu Adão.  

Ao fim da tarde chegámos à Quibala-Norte, onde iríamos pernoitar. Fomos bem recebidos pela guarnição, que procurou que ficássemos tão confortavelmente instalados quanto era possível, dentro das grandes limitações que eles próprios tinham.


Quibala-Norte

O quartel, constituído por edificações de madeira pré-fabricadas, situava-se num local isolado, que achei pouco aprazível e até um tanto perigoso pelas elevações que o rodeavam.

Retomada a viagem no dia seguinte o que mais me chamou a atenção foi o grande número de sanzalas abandonadas e completamente destruídas. Numa das paragens para distender as pernas e para outros alívios, abordei o assunto com um dos condutores dos camiões, afirmando, num misto de ignorância e ingenuidade, a minha revolta pela destruição "que os sacanas dos turras tinham provocado  na zona, despovoando-a". Para minha surpresa, ele disse-me que a destruição era obra da Força Aérea para evitar que se tornassem abrigos do inimigo, depois de os moradores que não se juntaram aos guerrilheiros terem sido acantonados em sanzalas construídas junto dos aquartelamentos.


Igreja do Toto (Foto de Raul Sanches)

Chegados ao Toto, destino final da CArt 739, as outras unidades do Batalhão separaram-se. A CCS e a CArt 740, seguiram para o Vale do Loge e a Serra da Inga, respectivamente, e nós prosseguimos a viagem para Lucunga.

Parámos pouco tempo no Bembe, onde estava uma Companhia de Caçadores, para nos dessedentarmos com umas Cucas fresquinhas e, poucos  quilómetros depois, chegávamos à Missão do Bembe, onde já não havia missionários. O edifício que eles habitaram durante muitos anos, tinha-se transformado no quartel da Companhia de Caçadores 715, onde os camaradas ali aquartelados nos tinham preparado uma inesperada, mas muito agradável recepção. À nossa espera estava uma longa mesa, posta com os petiscos possíveis naquelas circunstâncias, mais as indispensáveis cervejas, para reconforto dos nossos estômagos, há dois dias a ração de combate.


Missão do Bembe (Foto de Carlos Cristóvão)

A forma hospitaleira como fomos recebidos, marcou-nos profundamente e foi o princípio de uma amizade que, nalguns casos, ainda se mantém. Por exemplo, a foto da Missão que ilustra este texto, foi-me enviada pelo antigo furriel-miliciano Carlos Cristóvão, daquela Companhia.

Duas horas depois, já ao anoitecer, chegámos ao nosso destino.

Ninguém nos tinha avisado das características do "quartel". Na realidade, não havia um quartel propriamente dito. A povoação de Lucunga que estava rodeada por uma vedação de arame farpado, com quatro "torres" de vigia, era o quartel. As moradias da povoação (que tinham sido abandonadas - e muitas destruídas - em Março de 1961), que se estendiam por algumas centenas de metros ao longo da estrada, eram os alojamentos que nos estavam destinados. 

Numa primeira impressão parecia um lugar simpático. Mas, sobre isso espero vir a escrever  no futuro. Afinal, hoje, só queria relatar a nossa viagem...

Nota: As fotos que ilustram este post foram recolhidas na Internet, excepto a da Missão do Bembe. Sempre que identificados, indico os autores.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Luanda - II


Vista aérea de Luanda na década de 1960

Apesar de toda a informação que procurei obter nos meses que antecederam a  viagem para Angola, Luanda acabou  por me surpreender.

A cidade que conheci durante os poucos dias que antecederam a partida para o Norte, era uma metrópole moderna, com cerca de 500.000 habitantes, parecendo-me um excelente lugar para viver, se se conseguisse ultrapassar o desagradável calor húmido, a que nunca consegui habituar-me.





Piscina e bairro de Alvalade

(É claro que durante esta curta estada, apenas conheci a Luanda dos brancos. Mais tarde, noutras visitas, conheci a outra realidade ao visitar alguns musseques, onde o dia-a-dia dos moradores era substancialmente diferente, fosse qual fosse o ângulo de observação.

É certo que para os que  residiam na cidade "branca" também não era a mesma coisa morar no chique Bairro de Alvalade ou no Bairro Popular, por exemplo.


Bairro Popular

Alguns dos meus camaradas, sobretudo os lisboetas, não eram da mesma opinião, fazendo comparações negativas em relação a Lisboa.  Mas sabemos como nesse tempo os alfacinhas achavam que "Portugal é Lisboa, e o resto é paisagem!" Havia que dar o necessário desconto à sua parcialidade.

Nos dias que antecederam o início da viagem para Lucunga  desforrámo-nos por antecipação, dos longos meses em que iríamos viver longe do conforto e das distracções que a vida citadina proporcionava.

Dos locais que então frequentámos, importa fazer uma referência especial à Cervejaria Portugália, que era uma espécie de ponto de encontro de tudo o que era tropa em Luanda. Quer se tratasse de militares em serviço permanente na cidade, quer se tratasse de pessoal em gozo de férias, em trânsito, ou em consulta externa no Hospital Militar, todo o "mundo" passava pela esplanada da Portugália, que ficava numa espécie de ilha aberta na rua, debaixo de três frondosas árvores, na baixa da cidade. Tal como em visitas futuras, a noite terminava quase sempre lá, com um fino e um prego no pão para aconchegar o estômago antes de recolhermos aos respectivos alojamentos

Costumava mesmo dizer-se, brincando, que a Portugália era a 5ª Repartição do Quartel General (note-se que o Q.G. apenas tinha quatro repartições).


Largo da Portugália (Foto do final dos anos 50)

O local era também muito frequentado por cauteleiros, cujo negócio principal parecia ser, não a venda de lotaria, mas o mercado negro de câmbio de escudos europeus, por escudos angolanos, também conhecidos por angolares. Era uma  transacção lucrativa para ambas as partes, já que nós trocávamos os escudos a um câmbio bem mais favorável do que ao balcão dos bancos  e eles revendiam-nos aos habitantes locais com boa margem de lucro, dada a quase impossibilidade de transferir a moeda angolana para fora do território. (No meu  "baptismo" cambial vendi os escudos com lucro de 20%, mas em Agosto desse ano chegou aos 30%.)

Outros lugares muito frequentados, além da Cervejaria Amazonas - a que já me referi em post anterior - eram também, a Cervejaria Biker, com uma boa sala de bilhares, o Café Polo Norte, o Baleizão - célebre pelos seus excelentes gelados (embora os tais lisboetas achassem que os do Santini, em Cascais, eram muito melhores) - e a Pastelaria Versalhes, que ficava em frente à Portugália, e que era um lugar mais “chique”, frequentado pela "fina flor" da cidade.



Cinema Miramar

As idas ao cinema também faziam  parte do programa. Nunca esqueci a surpresa que tive quando entrei pela primeira vez no Cinema Miramar. Talvez não haja nenhum outro cinema em que o nome corresponda tanto à realidade. A “sala” do cinema era uma enorme esplanada, com uma pala à maneira dos estádios de futebol e com uma vista deslumbrante sobre a baía. Na área envolvente havia um grande jardim.

Em Luanda, nas deslocações mais longas, utilizávamos o táxi. No percurso para o Cinema Miramar, um dos passageiros era o Rodrigues, que era já veterano na cidade. Ao passarmos num largo - que mais tarde vim a saber que era o Largo dos Lusíadas - reparei num edifício que me chamou a atenção pelas suas dimensões e perguntei-lhe: 
"- É pá, o que é aquilo?"
"- É o palácio da hortaliça", respondeu ele.
Perplexo, repeti em voz alta: "palácio da hortaliça?!!!"
Então, o motorista esclareceu : "O seu colega está a brincar consigo. Aquele edifício é o mercado de Kinaxixe!"
Não estava mal achado. Nunca tinha visto um mercado com linhas tão modernistas.


Largo dos Lusíadas e Av. dos Combatentes (à esqª, em 1º plano, o Mercado do Kinaxixe)

Havia outros cinemas, mais ou menos modernos: o Alvalade, que ficava no Bairro com o mesmo nome, era também muito confortável. Tinha a particularidade de ter uma espécie de painéis laterais amovíveis, que abriam ou fechavam de acordo com as condições do tempo. O Restauração, que era um clássico, onde além do cinema, também havia teatro e, pelo menos uma vez por semana, tinha lugar um popular programa de rádio que se chamava, salvo erro, "Chá das Seis", que era transmitido em directo, e onde actuavam os mais famosos artistas da época.

Cinema Restauração (Foto do final dos anos 50)

Nesses dias só não conseguimos ir à praia. O dia era passado no Campo Militar do Grafanil, donde saíamos ao fim da tarde. Só viria a conhecer a ilha de Luanda e as suas praias, em Agosto, altura em que os luandenses não as frequentavam. Era o tempo do cacimbo. Muito frio diziam eles. Não para mim, habituado às águas frias da Figueira da Foz, de Carcavelos ou da Praia Grande, em Sintra.

Estes dias em Luanda, que foram quase de férias, passaram depressa. Seguiu-se a viagem de cerca de 500 kms. Mas esse é tema para outra ocasião.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Luanda - I

Porto de Luanda

Desembarcámos Luanda em 18 de Janeiro de 1965. Já ia distante o ano de 1961, altura em que os primeiros militares que chegaram depois do início da guerra no Norte desfilavam na Avenida Marginal, vitoriados por milhares de residentes.

A situação tinha mudado, e as circunstâncias que rodearam a nossa chegada estiveram longe de contribuir para animar as hostes.

Alguns militares da minha Companhia choravam, desolados, estranhando as barrocas de terra vermelha que caracterizam a aproximação ao porto de Luanda e que constituíam a primeira visão que tinham antes do desembarque. Ao mesmo tempo, queixavam-se da elevada temperatura àquela hora matutina, bem como da pegajosa humidade que se sentia. Era, para quase todos, um enorme “salto” no desconhecido, atendendo aos nossos pouco mais de vinte verdes anos.

Musseque

O desapontamento generalizou-se quando verificámos que o comboio que nos transportaria do porto de Luanda até ao quartel, no Grafanil, onde as unidades permaneceriam até à partida para o Norte, tinha apenas meia dúzia de carruagens de passageiros, sendo a restante composição constituída por vagões de mercadorias fechados, com uma larga porta de cada lado onde viajámos de pé em condições mais parecidas com as de um transporte de gado. A via férrea atravessava vários muceques onde a miséria era por demais evidente, e isso também não ajudou a melhorar o nosso estado de espírito. 

Desta forma, facilmente se compreende que o moral não fosse particularmente elevado quando, chegados ao Grafanil, saltámos dos vagões para o terreno arenoso.

Depois de formados à entrada do quartel iniciámos o desfile até ao local onde ficaríamos alojados. 

Entrada do Grafanil

Durante o tempo de instrução no RAL1 fomos treinando, por iniciativa do comandante da Companhia, uma espectacular forma de marchar a que ele chamava  “o passo de parada”. No passado tínhamos marchado assim algumas vezes, a última das quais durante o desfile no Cais da Rocha Conde d'Óbidos. Porém, o desalento naquela manhã era de tal ordem que, sem que tivesse havido combinação prévia, o “passo de parada” não saiu. Apesar das repetidas ordens, cada vez mais gritadas, o pessoal andava mais do que marchava. O nosso comandante de Companhia estava mais que descontente; estava furioso.

Mas, confirmando um velho princípio, quando as coisas podem piorar, pioram mesmo. E foi o caso.

Não esperávamos ter à nossa espera alojamentos luxuosos, mas esperávamos, pelo menos, ficar instalados em edificações pré-fabricadas. Porém, o que tínhamos à nossa espera  para passar os cinco dias que ali iríamos ficar eram pequenas tendas de três panos para alojar, cada uma, três militares com as respectivas bagagens. Aí, e embora  se soubesse que isso não resolveria nada, exercemos aquilo a que, anos mais tarde, um presidente da República chamaria de "direito à indignação", e não calámos o nosso  descontentamento. Cumpridor das normas, o capitão Rubi Marques limitou-se a avisar que todos (incluindo ele próprio) ficariam nas tendas.

Um aspecto do Campo Militar do Grafanil

No entanto, as coisas não se passaram bem assim. Da minha Companhia fazia parte o furriel-miliciano José Rodrigues que, apesar de ser o mais jovem furriel desta unidade ia já na segunda comissão em Angola (por troca com um camarada), pois tinha assentado praça, voluntariamente, aos 18 anos, e a sua experiência seria decisiva para que, ao fim da tarde, um pequeno grupo de que fiz parte, se “desenfiasse”, evitando dormir nas malfadadas tendas.

Conhecendo as rotinas do quartel o Rodrigues sabia que havia sempre viaturas a sair do Grafanil para Luanda, e vice-versa. Sabia também que não havia qualquer tipo de controlo, pelo que bastaria que fossemos até à porta de armas e apanhássemos boleia numa dessas viaturas. Assim fizemos, e em Luanda ficámos numa moradia, na Avenida Marechal Carmona, cuja dona ele já conhecia e que alugava quartos a militares.

Luanda - Avenida Marechal Carmona

Nessa primeira noite (e nos dias seguintes) o Rodrigues revelar-se-ia um precioso cicerone. 

Jantámos na Baixa, na Cervejaria Amazonas (que viria a ser, não só nesses poucos dias mas também nas deslocações que depois fizemos a Luanda, uma espécie de cantina para muitos de nós), e andámos a conhecer algumas boites da cidade (nesse tempo, para nós, discotecas eram lojas que vendiam discos). 



Deitámo-nos tarde, pedindo que nos acordassem às seis horas. Nem tomámos pequeno-almoço. Apanhámos dois táxis e seguimos para o Grafanil, onde aparentemente a nossa ausência não fora notada. É claro que a nossa saída era do conhecimento de alguns. E a notícia da infracção acabou por chegar mais acima, mas sem consequências.

Os camaradas que lá tinham pernoitado pouco ou nada dormiram. Os mosquitos atacaram em massa, deixando na pele do pessoal as marcas da sua acção, acompanhadas por um forte prurido. Dentro da minha tenda, que tinha ficado só com a bagagem, havia uma nuvem de mosquitos. Do que nos livrámos...

Nesse dia, e nos seguintes, as ordens foram alteradas. O comandante da Companhia passou a autorizar as dormidas em Luanda, excepto, naturalmente, para quem estivesse de serviço.

E, nos dias seguintes ao fim da tarde, lá partíamos à descoberta da cidade e à recarga das baterias para a permanência no “mato”, que nos esperava.

Dessa descoberta "falarei" no próximo post.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Navegando rumo a Angola

Depois das emoções da despedida a viagem decorreu sem sobressaltos, e até o mar, sempre calmo, ajudou.

O "Vera Cruz" tinha sido construído para transportar cerca de 1.200 passageiros (as fontes informativas que consultei variam entre os 1.182 e os 1.242  viajantes).

Porém, quando fazia a "Linha de África" transportando militares, chegou a ter lotações de mais de 3.000 passageiros.

Na nossa viagem para Luanda seguiram a bordo 3 Batalhões e algumas Companhias e pelotões independentes. Não sei exactamente qual era o número total de passageiros, mas presumo que deveria ultrapassar os 2.500.



Almeida, Fonseca, Babo, Miranda Dias e Mourão

 Os oficiais e os sargentos viajaram instalados em 1ª e 2ª classes, respectivamente. No meu caso, dividi um confortável camarote com o Mário Abreu. 

Não se pode dizer o mesmo quanto à classe de praças; os alojamentos não eram tão confortáveis, sobretudo para os que, não tendo tido a sorte de conseguir um beliche nos já de si sobrelotados camarotes de 3ª classe - nos corredores foram improvisadas "camas" suplementares - se viram obrigados a dormir em "beliches" instalados em tudo o que fosse espaço vago.

Na 2ª classe, não só tínhamos boas acomodações, mas também usufruíamos de um serviço quase luxuoso. A ementa das principais refeições (almoço e jantar), incluía sopa, peixe, carne, fruta ou/e doce, água ou vinho e café. Tínhamos pequeno almoço à escolha do freguês (à inglesa ou continental) e um lanche (a que só compareci uma vez para ver como era), com chá, café, e leite, uma grande variedade de bolos, pães, croissants, etc. 



Salão do navio "Vera Cruz"

Em suma, comia-se à grande e à francesa, talvez para compensar, por antecipação, as inúmeras ocasiões em que, no mato, iríamos ter para comer apenas rações de combate (e alguma fruta que os macacos, magnânimos, nos deixassem nas árvores).
                                                                
Às cinco da tarde abria o bar, onde podíamos escolher toda a espécie de bebidas, incluindo alguns cocktails que a maioria só conhecia dos filmes, ou da leitura de romances.

Ao serão, podíamos assistir à projecção de um filme, ou à exibição de um conjunto musical (fracote). Quer um, quer outro espectáculo tinham lugar alternadamente na 1ª e na 2ª classes.
                                                            
Como não há bela sem senão, também tínhamos um acontecimento diário que todos considerávamos um frete. Depois do almoço tocava a sereia do navio e todos nos dirigíamos para um exercício de salvamento junto das baleeiras, que terminava sempre com o pessoal a cantar em coro a célebre “Angola é nossa” (a maior parte dos “passageiros” pensava que Angola era mesmo nossa. Afinal era engano...).

O resto do tempo era aproveitado ao gosto de cada um. Lia-se, escreviam-se cartas, ouvia-se música, jogava-se (muitas vezes a “doer”)...



Preparativos para a festa a bordo

 Ao fim de três ou quatro dias de viagem a temperatura começou a subir e a piscina começou a registar uma grande afluência. No meu caso, não fui freguês assíduo porque depois da natação não era possível tomar duche com água doce, que era fechada às 9 horas da manhã. A partir dessa hora podíamos tomar os duches que quiséssemos, mas de água salgada.

Além destas formas de entretenimento conversava-se também muito, sobretudo especulando sobre qual seria a zona de Angola que nos estava destinada.

Este era um assunto recorrente na 2ª classe, entre os camaradas dos três batalhões que seguiam a bordo. Sabíamos que havia três destinos: Zala (o mais perigoso de todos e, também, o lugar de Angola onde ninguém queria estar), Vale do Loge, e salvo erro,  Ambriz.

Como o comandante do nosso Batalhão tinha vindo de Zala, onde tinha exercido as funções de segundo-comandante do Batalhão que ia ser substituído, os camaradas dos outros Batalhões achavam que seria esse o nosso destino. Em boa verdade, também nós, no BART 741, achávamos que talvez essa teoria fizesse sentido e receávamos (muito) que a previsão se concretizasse.

O autor do texto com o soldado João "dos comboios" (2º pelotão)


Foi por isso com enorme alívio que, antes da chegada a Luanda, tomámos conhecimento de que o comando do nosso Batalhão (bem como a CCS) ficaria instalado no antigo colonato do Vale do Loge, e que as companhias  teriam os respectivos aquartelamentos em Lucunga (738), Toto (739) e Serra da Inga (740).

Entretanto, o "Vera Cruz" chegava a Luanda. Das particularidades desse dia darei conta noutra ocasião.

domingo, 9 de janeiro de 2011

O embarque


Na noite que antecedeu a nossa partida pouco se dormiu no quartel de Porto Brandão, onde ficámos a aguardar embarque depois de gozarmos os dez dias de férias a que tínhamos direito.

Na véspera tiveram lugar as despedidas de familiares e amigos. Um pequeno grupo de que fiz parte aproveitou as últimas horas para uma deambulação nocturna por Lisboa. Como ainda não havia ponte sobre o Tejo viajámos no último barco para Cacilhas, donde seguimos em dois táxis para Porto Brandão.

À hora tardia a que chegámos já há muito que se tinham fechado os portões do quartel, pelo que entrámos saltando o muro, de fácil transposição.

Ainda antes de amanhecer já se vivia uma azáfama nervosa no quartel. Estávamos a 9 de Janeiro de 1965, um sábado em que o Sol brilhava, e dentro de poucas horas embarcaríamos rumo a Angola e víamos um futuro que nos dois anos seguintes seria de incertezas, à mistura com muitos receios.


Ferry-boat semelhante ao que nos transportou de Porto Brandão para o cais da Rocha Conde de Óbidos


Do Porto Brandão até ao cais da Rocha Conde de Óbidos, onde nos esperava o navio “Vera Cruz”, a viagem fez-se a bordo de um ferry-boat especialmente fretado para o efeito.

Em conformidade com a legislação em vigor à época, na data do embarque para as comissões de serviço no Ultramar os aspirantes a oficial-miliciano, os cabos-milicianos e alguns soldados, eram promovidos a alferes, furriéis, e cabos, respectivamente. A maior parte dos militares do Batalhão abrangidos por estas promoções limitou-se a colocar os galões ou as divisas do novo posto nas respectivas platinas, nessa manhã, É certo que alguns alguns já as haviam exibido na véspera à noite, durante a despedida de Lisboa. A excepção verificou-se com os militares da Companhia de Artilharia (CArt) 738.

O capitão Rubi Marques, comandante da referida Companhia, determinara que a “cerimónia” das promoções teria lugar a bordo do ferry-boat, obedecendo a um ritual próprio que incluiu uma formatura geral da Companhia no amplo espaço do ferry-boat, habitualmente reservado ao transporte de automóveis.

E então, perante os (sor)risos trocistas dos restantes militares do Batalhão, o comandante da Companhia colocou nas platinas das fardas dos aspirantes a oficial os galões correspondentes ao posto de alferes; por sua vez, os novos alferes colocaram aos cabos-milicianos dos respectivos pelotões, as divisas de furriel; a estes, coube a imposição das divisas aos novos primeiros-cabos.

Foi uma situação que na altura nos causou algum desconforto. Não pela “cerimónia” em si (conhecíamos a propensão do nosso comandante de Companhia para o cumprimento destas formalidades) mas, sobretudo, pelas piadas de que sabíamos vir a ser alvo (e fomos) a seguir.

Mais tarde percebi que estes rituais eram também uma forma de criar o espírito de corpo e de nos fazer sentir diferentes. E, pouco depois, quer a troça, quer o gozo, tinham passado para trás das costas.

O resto da manhã seria cansativo, física e emocionalmente, com as formaturas, as senhoras do Movimento Nacional Feminino a distribuir medalhas religiosas e maços de tabaco, mas, sobretudo, com as penosas despedidas da família e amigos, a que se seguiu o desfile e o embarque.


Navio "Vera Cruz" inicia uma viagem com militares para Angola


No momento em que o navio começou a afastar-se do cais, ao mesmo tempo que uma banda em terra tocava o Hino Nacional, senti como se tivesse havido uma súbita ruptura, uma espécie de elo que se quebrara. Em conversas posteriores, concluí que não fora o único a experimentar essa sensação.

Quando se iniciou a descida do Tejo rumo à foz, cerca das 13 horas, a maior parte dos “viajantes” recolheu aos respectivos alojamentos para arrumar a bagagem. Eu fiquei no convés juntamente com os meus camaradas Mourão e Miranda Dias.

A ponte sobre o Tejo estava então em construção e recordo-me que, lá de cima, alguém gritou deixando-nos mais comovidos do que já estávamos:

“Boa viagem! Que Deus vos leve e traga de volta! Para o ano é a minha vez de ir!”

E ali ficámos a contemplar a costa que íamos deixando para trás, até que, em frente a Oeiras, alguém nos veio perguntar se não descíamos para almoçar. E lá fomos.

Do resto do dia não guardo outras lembranças, a não ser da surpresa pelo excelente serviço de refeições. Mas esse será um tema para outro dia.