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sexta-feira, 22 de abril de 2011

O Reintegrado


Lucunga
Em meados de Abril de 1965 apresentou-se no Posto Administrativo de Lucunga um jovem negro que afirmava ser natural daquela localidade. Segundo afirmava, teria fugido com os pais para Kinshasa em consequência dos massacres de Março de 1961. Entretanto, resolvera regressar e, sendo cidadão português nascido em Angola, pretendia reintegrar-se na sociedade angolana, decisão que era sempre muito bem vista (e desejada) pelas autoridades.

Tratando-se de um civil ficou sob a alçada do Administrador do Posto, em cujas instalações ficou alojado. Entretanto, e enquanto esperava pelo processamento das formalidades burocráticas necessárias à sua legalização, lentas como era (e continua a ser) da praxe, o jovem tornou-se uma espécie de hóspede de todos nós. Circulava livremente pela localidade, contava episódios da sua vida em Kinshasa, participava activamente nos nossos jogos de futebol, e ia bebendo as Cucas que uns e outros lhe iam pagando na cantina da Companhia.

Embora não houvesse instruções nesse sentido acabávamos, neste caso, por levar à prática a política de Acção Psico-Social que tão cara era, nessa época, às autoridades nacionais e, muito especialmente, ao nosso comandante de Batalhão, tenente-coronel Cabrita Gil, que levava muito (talvez até demasiado) a peito aquela directiva do Governo de Lisboa.

Com alguma frequência realizávamos no edifício do Posto Administrativo renhidos jogos de cartas, durante os quais se bebiam uns “brandies” (já então o Constantino era famoso e barato, na cantina) ou umas cervejolas, conforme os gostos de cada um.

Na tarde do dia 12 de Maio decorria um desses jogos. Além dos jogadores havia, como de costume, alguns assistentes. Um desses assistentes era o jovem negro recém-apresentado que, tendo bebido demais, “desatou a língua” numa loquacidade surpreendente para os presentes, que aproveitaram para lhe puxar pelo verbo, incentivado pelo álcool que ia ingerindo sem se dar conta que falava demais.

E então, para espanto de toda a gente, começou a vangloriar-se de conhecer pormenorizadamente todas as nossas actividades, bem como as  rotinas diárias da Unidade. Sabia onde eram os alojamentos de todos os militares, fossem oficiais, sargentos ou praças. Para finalizar em grande acabou "confessando" que a sua vinda a Lucunga tinha como objectivo, não a apresentação e consequente reintegração, mas antes a finalidade de conhecer os “cantos à casa”. Com o trabalho feito, tinha chegado a hora de partir.

Feita a revelação, saiu disparado, porta fora, em direcção ao campo de futebol e à saída poente da localidade.

De todos os presentes apenas um civil - o comerciante Santos - estava armado. Saiu atrás dele, tirou a pistola do coldre e fez dois disparos. Ao segundo disparo o fugitivo parou, no meio do campo, com as mãos no ar.



Lucunga - Hospital ao abandono

Conduzido à sala de Operações e Comando onde foi sujeito a um longo e particularmente duro interrogatório, pouco revelou de interesse para a nossa actividade operacional. Confirmou que tinha sido enviado pela FNLA para recolher informações, adiantando que fugira porque, precisamente no final desse dia, estaria à sua espera no edifício do hospital (em ruínas, e situado a algumas dezenas de metros da povoação) um pequeno destacamento da FNLA que o escoltaria de volta a Kinshasa, onde apresentaria o seu relatório.

Poucoss dias depois a Rádio Brazzaville confirmaria a estada dos FNLA's no hospital, ao mesmo tempo que aproveitava para fazer a sua propaganda habitual acusando-nos de termos utilizado métodos de interrogatório desumanos. Não estranhámos, porque não era a primeira vez que a nossa Companhia era "elogiada" nos noticiários daquela estação, nem seria a última.

Algumas semanas depois, já quase recuperado do susto que apanhou ao sentir as balas da pistola do Santos a assobiarem junto à cabeça, foi entregue a quem de direito.

Meses mais tarde militares da Companhia que se deslocaram à cidade de Carmona (Uige, actualmente) encontraram-no, casualmente. Parecia ter sido de facto reintegrado, pois trabalhava como contínuo na Repartição de Finanças local e, na ocasião, manifestou grande satisfação pelo reencontro.

Mostrou-se muito contente com o novo rumo que a sua vida tomara. Mas, estaria efectivamente reintegrado? Ainda hoje tenho dúvidas...

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