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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O Futebol em Lucunga




Oficiais e sargentos (incluindo dois suplentes, por causa da falta de ar)

Da esq. para a dta., em baixo: Azevedo, Fernandes, Ruas, Ramiro, Miranda Dias e Casimiro
De pé: Fonseca, Vaz, Morais Soares, Mourão, Pereira, Nunes da Silva e Fagundes

O futebol era, a par dos jogos de cartas, uma das formas mais usuais de ocupação dos tempos livres dos militares da CArt 738.

Exceptuando as ocasiões em que se realizavam operações conjuntas com outras unidades, quando era necessária a utilização de helicópteros que se serviam do campo de futebol como pista de aterragem e de estacionamento (para os pequenos aviões Dornier 27, tínhamos a pista de terra batida), todas as tardes realizávamos renhidos jogos de futebol.

No quartel e salvaguardando os serviços que implicavam um horário alargado (desde logo o serviço de guarda nas “torres” de vigia, a preparação das refeições e, eventualmente, os cuidados de saúde), as várias tarefas diárias tinham lugar entre as oito horas e as dezasseis e trinta, com intervalo para almoço e repouso das doze às quinze horas. (O intervalo para o almoço pode parecer demasiado longo, mas importa considerar que era também a hora em que a temperatura atingia o seu pico, e o capitão Rubi Marques achava que uma sesta depois da refeição ajudava a recuperar energias, no que estávamos todos de acordo. Pudera, não havíamos de estar!)


Oficiais e sargentos*

Da esq. para a dta., em baixo: Pereira, Azevedo, Ruas, Morais Soares e Rubi Marques
Em cima: Miranda Dias, Fonseca (com um fato de treino vermelho berrante, emprestado pelo benfiquista Fagundes), Mourão, Fernandes, Vaz e Fagundes

Das dezasseis e trinta até à cerimónia do arriar da bandeira que tinha lugar às dezoito horas, jogava-se futebol.

Estando quase sempre um pelotão(pelo menos) na mata em operações e dado que nem toda a gente tinha jeito ou gostava de jogar, tornava-se por vezes difícil juntar vinte e dois jogadores com habilidade. Era preciso, então, recrutar aqueles a quem o alferes Pereira chamava os “três pés”, porque, parecendo que tinham pés a menos para jogar a bola, aparecia sempre um pé a mais para dar nas canelas do “adversário”. Por causa de um desses “três pés” sofri uma fractura num osso do braço direito. Em consequência disso estive em tratamento no Hospital Militar de Luanda durante algumas semanas.

Além destas jogatanas, disputávamos de vez em quando jogos em que uma equipa de praças defrontava outra de oficiais e sargentos. Ganhava sempre a equipa de praças, embora a outra equipa desse muita luta.


Jogo com a CCaç 715, da Missão do Bembe (a nossa equipa jogou de tronco nu, porque as nossas camisolas eram da mesma cor das da Missão, embora um pouco mais escuras)

Da esq. para a dta.: Pereira (ou Fagundes?), Mourão, jogador da CCaç 715 (?)**, Fonseca (a defender um canto), encoberto outro jogador da CCaç715 (?), Miranda Dias, Vaz e Casimiro


Também houve um torneio em que os quatro pelotões jogaram entre si. Claro que foi uma disputa muito desigual porque o primeiro pelotão (por coincidência o meu) tinha uma equipa de estrelas que não dava qualquer hipótese aos outros.

Além destes jogos domésticos, também recebemos e visitámos os camaradas das Companhias 715, da Missão do Bembe, e 739, do Toto. Nestes casos, eram encontros de desporto e confraternização que, habitualmente, incluíam outras modalidades, como o Andebol, o Voleibol e o indispensável almoço.

Sobre o Andebol, e a sua introdução nos nossos tempos livres, tenciono escrever lá mais para a frente.

Na época das chuvas era frequente termos de terminar o jogo inopinadamente devido a um curioso fenómeno meteorológico. De repente, na tarde calma e quente, levantava-se uma forte ventania, seguida quase de imediato por chuva tão forte que parecia que o céu tinha aberto as comportas. Em pouco tempo formava-se um caudal que transformava a rua num rio. Pouco depois cessava o “dilúvio”, voltava o sol, e o calor secava tudo tão rapidamente que nem parecia ter chovido.



1º Pelotão

Da esq. para a dta., em baixo: (António Gomes), Grilo, Pereira, Resende, Brandão e (Cerqueira?)
De pé: Fonseca, Redondo, Oliveira,(?),  Azevedo, Dias, e Teles (?)

Mal dávamos pela aparição do vento corríamos a toda a velocidade para a casa mais próxima, mas quem estivesse na zona mais afastada do campo ficava encharcado. Não era que tivesse muita importância, porque, afinal de contas, íamos tomar duche a seguir.

De uma das vezes que entrámos na “casa-refúgio”, que era também o alojamento de alguns militares, alguém deu um berro porque acabava de encontrar uma cobra surucucu enrolada no pé de uma das camas de ferro. Não houve qualquer problema, a não ser para a pobre cobra, que estava no lugar errado, à hora errada, e terminou, assim, os seus dias de forma inglória.

 Surucucu



* Esta parece ser a equipa que defrontou a CCaç 715, o que é estranho, porque inclui apenas oficiais e sargentos, não sendo a nossa melhor equipa. Da melhor equipa faziam parte, entre outros, o Oliveira - talvez o nosso melhor futebolista -, o Resende, o Brandão, o Dias e o Cristóvão.





terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A Caça

Na região de Lucunga abundavam as pacaças, as quissemas (também conhecidas por "burros de mato", porque a única particularidade que as distingue dos burros são os chifres que possuem), os antílopes (*) (aos quais, fosse qual fosse a designação correcta do animal caçado, e eram muitas,  chamávamos sempre, generalizando, "veados"), os javalis-africanos, também chamados javalis-facocheros, ou simplesmente facocheros, as galinhas de mato e as saborosas perdizes.


Javalis-africanos pastando

Perante esta dádiva aproveitávamos algum do nosso tempo livre para caçar, contribuindo dessa forma para variar, e ao mesmo tempo melhorar, a qualidade das feições.

Porém, esse benefício só contemplava toda a gente se o animal caçado fosse uma pacaça ou uma quissema. Quanto aos "veados" o seu consumo só podia ser generalizado a toda a Companhia se fossem abatidos, pelo menos, três exemplares (o que não era fácil) e, mesmo neste caso, a fartura não era muita.



Quissema

Já no que se refere às galinhas de mato e às perdizes o seu consumo era restrito e pouco frequente, não só pelo seu reduzido tamanho, mas também porque quando se caçavam à bala, ficavam normalmente desfeitas e sem préstimo. E, espingardas-caçadeiras, mais adequadas a este género de caça, havia apenas duas no quartel: uma do furriel-mecânico António Sousa e outra do alferes-médico Salazar Leite. Não é de estranhar por isso que, quando iam parar ao tacho, o petisco apenas fosse saboreado por um grupo reduzido. Umas vezes calhava a uns, outras vezes a outros. 

Devo dizer que apesar da abundância de javalis-africanos, não tenho memória de que alguma vez se tenha conseguido caçar algum. Na zona do curso de água onde nos abastecíamos havia muitos, e não foram poucas as vezes em que tentei apanhar ao menos um, para provar a carne que me diziam ter um paladar delicioso. Avistei vários, de fugida, mas mal levantava a FN para fazer pontaria, eles desapareciam a uma velocidade impressionante para o seu peso. 

Resultado da caçada
Da esq. para a dta.: Gomes, Fonseca, "Porreiro da Vida" (de cócoras), Abreu e (?)

Como era um bocado piegas, deixei de tentar caçá-los depois de ter visto (e ouvido) a aflição de uma fêmea a tentar fugir com a sua ninhada de leitõezinhos. E foi assim que fiquei sem saber qual era o seu paladar.

Numa dessas expedições de caça de que não fiz parte, foram abatidas duas pacaças o que criou um problema ao Vaz, o nosso vagomestre, que não tinha espaço suficiente nas arcas para guardar os dois animais e, com a elevada temperatura africana, a carne ficaria rapidamente imprópria para consumo.

Alguém teve então a ideia de, numa acção de boa vontade e camaradagem, oferecer uma das pacaças aos camaradas aquartelados em Chimacongo, localizado a cerca de 30 kms., onde tinha chegado há pouco tempo, uma Companhia de "maçaricos". E se o vagomestre de Chimacongo acreditava em milagres, deve ter considerado aquele presente uma dádiva divina porque, talvez por inexperiência, estava com um sério problema, pois o "seu" depósito de géneros não tinha nem um grama de carne. 


Tarde de caça
Da esq. para a dta.; Azevedo, Fonseca, atrás a apontar a caçadeira, o Sousa, Mourão e Silva

Aliás, segundo nos contou o furriel Vaz, pouco mais tinham do que bacalhau e conservas.

Mas, apesar da nossa "boa vontade", o relacionamento entre as duas Companhias nunca foi muito boa. Pelo menos entre os respectivos comandantes. 

Para operarem numa zona da margem esquerda do rio Coji, cuja vigilância era da sua responsabilidade, os militares de Chimacongo tinham de passar pelo nosso quartel para terem acesso à jangada onde efectuavam a travessia do rio.

Sucede que quando o faziam passavam por  Lucunga "como cão por vinha vindimada" (sobretudo quando vinham com o comandante de Companhia), sem sequer fazerem a paragem de cortesia que era da praxe nestes casos. Ora, o capitão Rubi Marques achava que este procedimento consubstanciava uma grave falta de respeito e, na primeira oportunidade, chamou a atenção do comandante de Chimacongo. Sem resultado, porque a reacção deste foi, no mínimo, pouco ou nada amistosa.


Da esq. para a dta.: Fonseca, Azevedo, Sousa, Mourão e Silva
Não consigo identificar os militares em cima do "jipão", por falta de nitidez da foto. Mas o que está mais próximo, de pé, parece o Morgado e, ao lado dele, em baixo parece o soldado-condutor,  Lobo (mais conhecido por Cigano, num tempo em que isso não era politicamente incorrecto)

Para grandes males, grandes remédios. O nosso capitão não esteve com meias medidas e resolveu mandar colocar cancelas nos acessos ao quartel, que ficavam permanentemente fechadas a cadeado. Sempre que alguma viatura precisava de sair ou entrar, o sargento de dia saltava para a bicicleta que tinha  sido comprada para o efeito, e ia abrir a cancela.

A primeira vez que o comandante de Chimacongo chegou e encontrou a cancela fechada foi um Deus nos acuda. Berrou, esbracejou, ameaçou rebentar "com esta merda" - palavras dele -, mas não teve outro remédio se não ir ao posto de comando, falar com o capitão Marques, em conformidade com as ordens que este tinha dado ao sargento de dia.

Lá dentro o diálogo foi tudo menos amigável. Cá fora ouviam-se perfeitamente as vozes alteradas dos dois oficiais.

A verdade é que o sistema da cancela fechada se manteve durante o resto da nossa  permanecemos em Lucunga.




(*) No texto inicial escrevi "cervídeos" em vez de "antílopes".  Entretanto, um biólogo que é visitante habitual do blogue, enviou-me um e-mail chamando a atenção para o facto de não existirem cervídeos em África. O que nós caçávamos eram antílopes, que são bovídeos.


Está feita a devida rectificação.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Os Civis de Lucunga


A sanzala de Lucunga, ao fundo; no edifício branco, à esquerda, funcionava o Posto Administrativo 

Os textos que publiquei anteriormente poderão ter deixado a ideia de que todos os habitantes de Lucunga eram militares.

Ora isso não corresponde à verdade, já que também lá residiam civis. Desde logo, os moradores da sanzala. Os seus habitantes eram, na maioria, mulheres, homens idosos e crianças. Escrevo de memória, mas não errarei muito se afirmar que entre eles não havia residentes do sexo masculino com idades entre os 15 e os 45 anos.

Exceptuando s crianças quase todos tinham partido para a mata depois da eclosão do terrorismo, em 15 de Março de 1961, acompanhando – forçados ou voluntariamente – os “insurrectos”. Os que tinham idade para isso, reforçaram as suas fileiras, tornando-se combatentes; as mulheres e os mais velhos ficavam nas bases ocupando-se de tarefas de apoio logístico. Os que eram fisicamente capazes serviam de carregadores de artigos diversos entre o ex-Congo Belga, onde tinham as estruturas de apoio, e as bases angolanas.


Escolhendo amendoim
Da esq. para a dta.: Miranda Dias; meio tapado, o pequeno Pedro (filho da Conceição); Fonseca; Conceição; Azevedo; de costas a Maria(?)

Entretanto, e em consequência da actividade das nossas forças, quer através de operações de assalto às bases, quer através de emboscadas montadas ao longo dos percursos que o inimigo utilizava, muitos desses elementos foram sendo recuperados e reinstalados nos lugares de origem.

Embora enquanto civis dependessem do Chefe do Posto Administrativo – outro civil a residir na povoação -, tinham algum apoio da parte da nossa Companhia, bem como de alguns dos seus militares, individualmente.

Da Companhia recebiam cuidados médicos e de enfermagem e algum dinheiro por pequenos serviços que prestavam. Recebiam igualmente a alimentação que sobrava das nossas refeições. As mulheres lavavam e passavam a ferro a roupa de alguns militares, recebendo em troca o pagamento previamente acordado.



Na sanzala, com o Pedro, filho da Conceição

Havia ainda mais três residentes civis que tinham sido proprietários de fazendas de café na região.

Um deles era o Sr. Santos, homem com grande conhecimento da zona e que no início da comissão nos serviu de guia nalgumas operações. Tinha um pequeno comércio onde comprávamos um ou outro produto que não havia na cantina. Por exemplo, as prendas de anos - um tema de que espero “falar” num futuro post – eram compradas lá.

Acompanhava-nos também nalgumas expedições de caça, dando-nos dicas preciosas, por exemplo sobre os cuidados a ter para evitar as arremetidas de pacaças feridas.

Bom conversador, era capaz de passar horas a contar-nos as suas experiências naquelas terras.

Os outros dois civis constituíam um casal (homem e mulher, como era usual à época), cujos nomes se perderam nas névoas da minha memória, talvez porque não tivesse convivido muito com eles. Tinham uma espécie de bar, cuja exploração não podia render proventos bastantes para lhes garantir a sobrevivência, atendendo a que os produtos que vendiam podiam ser adquiridos na nossa cantina por metade do preço, ou menos.

A verdade é que havia militares que, uma vez por outra, lhes frequentavam o estabelecimento.

Lá mais para diante contarei a história de outro "morador temporário", que trazia água no bico, sem que disso nos apercebêssemos.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

O "Monumento"


Tradicionalmente – se a uma prática com meia dúzia de anos se pode chamar tradição - as Companhias erigiam nos locais onde estavam aquarteladas um “monumento” que assinalava a sua presença. Na prática, aquelas pequenas construções tinham um significado equivalente aos dos padrões que os navegadores portugueses erigiram ao longo da costa africana durante a epopeia dos Descobrimentos, salvaguardando as devidas distâncias, como é evidente.

As fotografias que ilustram este texto foram-me enviadas pelo Jorge Isidoro, que foi furriel-miliciano da CCaç 1495, que nos rendeu em Fevereiro de 1966, tendo permanecido em Lucunga durante os 27 meses que durou a sua comissão. Nesta foto, que foi tirada de um ângulo mais favorável do que os de qualquer uma das fotos que eu já tinha do nosso “monumento”, o Jorge está de pé, enquanto, sentado, está o Antunes, igualmente furriel-miliciano daquela Companhia.

Monumento da CArt 738

Na fotografia podem ver-se, ao fundo, a oficina-auto e, em segundo plano, o mastro com a bandeira nacional (mais à direita vê-se também a casa do gerador que nos fornecia energia eléctrica, quando não estava avariado).

No espaço entre o mastro da bandeira e a oficina formavam todos os militares da Companhia, diariamente, às oito horas, para assistir ao hastear da bandeira.


"Casa dos Sete Magníficos"

Esta era a pequena moradia que foi a minha casa – e de mais seis camaradas - de Janeiro de 1965 a Fevereiro de 1966. Aqui, o “jardim” parece pouco cuidado. Deve ter faltado o cumbú* para pagar ao jardineiro.

A zona de intervenção das unidades aquarteladas em Lucunga abrangia uma vasta área na margem esquerda do rio Coji, pelo que, não havendo ainda a ponte o uso de uma jangada era indispensável para o cumprimento das nossas missões. Além do nosso pessoal, a jangada também era utilizada pela Companhia aquartelada em Chimacongo, que ficava cerca de 30 kms. a Leste de Lucunga, e cuja zona incluía igualmente algumas áreas na margem esquerda do rio.

Havia outros utilizadores, entre os quais se incluíam os grupos que então combatíamos, aos quais chamávamos terroristas ou, mais vulgarmente, turras (designações hoje politicamente incorrectas, como sabemos).

De vez em quando, ao chegarmos ao Coji a jangada estava encostada à outra margem. Atendendo ao facto de, no rio, além dos peixes e dos hipopótamos – estes numa zona um pouco mais a jusante – também nadarem crocodilos, antes de um voluntário atravessar o rio a nado para trazer a jangada, era preciso varrer a corrente com algumas rajadas de FN, e lançar duas ou três granadas, para afastar os indesejáveis animais. Claro que essa acção provocava aquilo que hoje se designa por “efeitos colaterais”: no caso, alguns quilos de peixes mortos.




Militares da CCaç 1495 atravessam o Coji na nova jangada

A jangada da fotografia foi reconstruída pelos militares que nos foram render. E, pelo aspecto, fizeram um excelente trabalho. Parece nova


* Dinheiro em quimbundo

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O Reabastecimento


Toto - Vista a partir da igreja


Duas vezes por semana saía uma coluna de Lucunga para o Toto, onde, além da entrega e recepção do correio, se fazia igualmente o reabastecimento de géneros. A viagem prolongava-se quase sempre até ao Vale do Loge onde estava instalado o comando do Batalhão, não só para entregar e receber documentação variada, mas também para que o vagomestre, furriel-miliciano Vaz, adquirisse produtos frescos, incluindo carne de vaca abatida na hora.

Fiz várias vezes este percurso, quer como responsável pela segurança da coluna, quer, estando de folga, como "turista". Nesta última qualidade aproveitava para rever e conversar com os camaradas da CArt 739, no Toto, da CCS, no Vale do Loge e da CCaç. 715 na Missão do Bembe.

Outro motivo para a viagem era petiscar um almoço com uma ementa melhorada no restaurante do "Hotel" do Toto, propriedade de um cidadão que, curiosamente, se chamava Cid Adão, e de quem se dizia, entre outras coisas, que era dono de tudo o que tinha valor naquela localidade. 


Vale do Loge (Foto anterior a 1960)

A este respeito contava-se até uma  anedota que não andava longe da realidade. 

Certa ocasião o sr. Adão teria encontrado um amigo em Luanda acompanhado por pessoas que ele não conhecia, e foi-lhes apresentado como sendo "o sr. Adão, do Toto", ao que ele teria respondido "não, não, o Adão não é do Toto, o Toto é que é do Adão!"

Como dizia o outro: "Pode não ser verdade, mas é bem achado".

Enquanto responsável pela segurança da coluna, a viagem era sempre feita sob alguma tensão, atento ao que nos rodeava durante todo o percurso. Tinha especiais cuidados na abordagem a uma certa curva, em forma de bico de pato, que me parecia propícia a uma golpe do inimigo que, se bem preparado, nos causaria sérios danos. Se eu estivesse do outro lado, e tivesse poder de decisão, aquele seria, sem sombra de dúvida, um dos locais escolhidos para montar uma emboscada.  Felizmente nunca tivemos problemas nesse percurso.

Recentemente, ao fazer uma pesquisa, li num blogue, de cujo endereço não tomei nota, que em 1969 uma coluna que se dirigia de Lucunga para o Loge sofreu naquele local uma emboscada de que resultaram onze mortos, além de vários feridos, entre as nossas tropas.

Quando viajava como "passageiro", sem o peso da responsabilidade pela segurança dos outros, ia completamente descontraído, o que não significava o mesmo que ir distraído. 


Rua do Bembe

À terça-feira, um comerciante do Bembe recebia por avião, via Toto, uma remessa de camarões deliciosos, dos grandes, cozinhados com gindungo, como era uso em Angola. No regresso trazia sempre umas quantas doses desses camarões, que iriam servir de petisco, acompanhados com vinho verde, envasilhado em grandes garrafões com "carapaça" de gesso que, entretanto, o Vaz - que além de fazer sempre a viagem como responsável pelo reabastecimento, fazia também parte do grupo dos petiscos - tinha deixado a refrescar.



Do "grupo do camarão" faziam parte habitualmente, o Vaz, o Mourão, o Miranda Dias, o Almeida, o Morais Soares e eu próprio, a que eventualmente se juntava um ou outro. Deste grupo, só eu e o Miranda Dias aproveitávamos as cabeças do camarão. Os outros, que não gostavam das cabeças, iam "devorando" a maior parte dos bichos, o que significava que nós, entretidos com as cabeças, acabávamos por comer menos. Então, a partir de certa altura resolvemos trazer mais um prato onde colocávamos as cabeças, que deixávamos para comer no fim, enquanto íamos acompanhando o ritmo dos parceiros. Desta forma, quando os outros acabavam o petisco, nós continuávamos a comer as cabeças, que tínhamos separado  com um generoso pedaço do corpo agarrado.

E não é que eles nunca deram pela marosca!

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Os aerogramas





Na situação de isolamento em que nos encontrávamos (ainda estava longe a era da Internet e dos telefones-satélite) enviávamos e recebíamos correspondência duas vezes por semana, por norma às terças e quinta-feiras. Por vezes à sexta, se o Nord Atlas  (“barriga de ginguba”, na gíria da tropa) da Força Aérea alterava o dia da escala no Aeródromo do Toto.


Quando a coluna do reabastecimento com o correio chegava, ao fim do dia - ou já de noite, se no tempo das chuvas alguma viatura se tinha atolado no caminho - todo o pessoal se reunia para receber o correio. Era sempre um momento de contraste entre a alegria dos contemplados e a tristeza daqueles a quem ninguém escrevera.


Notícia publicada no Diário Popular, em 2 de Agosto de 1961


A maior parte da correspondência era constituída por aerogramas, criados por iniciativa do Movimento Nacional Feminino (MNF), que também procedia à sua distribuição. 

Porém, as pequenas quantidades entregues mensalmente ao pessoal, eram geralmente insuficientes para as necessidades, pelo menos na nossa Companhia em que cada militar recebia cinco aerogramas por mês, salvo erro.


Uma das versões dos aerogramas


É certo que alguns não os usavam em toda a correspondência, em parte porque o espaço para a escrita era restrito, e em parte porque para alguns remetentes preferiam enviar cartas, embora tivessem de pagar os blocos, os sobrescritos e os selos.

Tendo pertencido a este último grupo, distribuía os meus aerogramas pelos camaradas da minha secção.

Quando em Outubro de 1965 vim passar um mês de férias a Portugal prometi ao meu pelotão que, no regresso, lhes levaria uma boa quantidade de aerogramas, que iria comprar à sede do MNF, em Lisboa.

E assim fiz. Fui atendido por uma senhora que, depois de lhe explicar a situação e de lhe expor a minha pretensão de levar mil aerogramas para distribuir pelo pessoal, ficou muito atrapalhada, dizendo-me que não era possível fazer uma entrega tão grande porque a distribuição era feita por canais próprios. E acabou dizendo: "Já viu o que era se fossemos dar mil aerogramas a todos os militares que vêm de férias?"  

Quando lhe respondi: "Mas, minha senhora, eu não quero que mos dê, quero pagá-los", respondeu logo: "Ah! Então pode levar os que quiser!"


Aerograma alusivo à quadra natalícia


Paguei duzentos escudos e lá levei os aerogramas, para alegria do "meu" pessoal e de alguns mais a quem foi alargada a distribuição, e que durante algum tempo não precisaram de fazer racionamento.

Os aerogramas tiveram várias versões, como se pode constatar pelas imagens.


terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Hoje Canta o Farinha!



Lucunga (anos 70)

Apesar das condições de relativo isolamento em que vivíamos em Lucunga, não se pode dizer que a alimentação fosse má.

No Exército os vagomestres tinham má fama, e admito que, com alguma frequência, isso não acontecesse só por má vontade.

No caso da nossa Companhia, ninguém podia, sem faltar à verdade, acusar o furriel-miliciano Vaz de não se esforçar por fornecer a melhor alimentação possível, dentro das circunstâncias a que o seu espinhoso trabalho estava sujeito bem como aos condicionalismos em que era feito o reabastecimento.

Fome ninguém passava. É certo que embora os géneros existentes no depósito fossem à partida iguais para todos, se comia um pouco melhor nas messes de oficiais e sargentos, que tinham cozinha e ementa comuns.

Quando chegámos a Lucunga o comandante de Companhia determinou que embora os locais das refeições fossem diferentes (rancho geral, messe de oficiais e messe de sargentos), haveria uma ementa única confeccionada na cozinha do rancho geral.

E, durante os primeiro dias, foi esse o procedimento seguido. Porém, pouco tempo depois – cerca de duas semanas, se bem me lembro - começaram a ouvir-se vozes de descontentamento entre alguns comensais das messes. Por essa altura e a fim de calar as insatisfações (e quem sabe se por não estar também contente com os “petiscos”) o nosso capitão decidiu que embora os géneros continuassem a ser exactamente os mesmos, as refeições das messes passavam a ser confeccionadas em separado numa cozinha instalada na messe dos oficiais, onde ficou também a funcionar a messe de sargentos, embora numa sala diferente.

Com o tempo acabou por se subverter a norma dos “géneros iguais” e, na maior parte das vezes, as refeições da messe eram diferentes, para melhor, do que as do rancho geral. A excepção era a sopa, que continuava a ser fornecida pela cozinha do rancho.


Na messe de sargentos 
Convívio com militares da CCaç. 715, da Missão do Bembe, que incluiu jogo de futebol
Da esq. para a dta., com o rosto visível: Rodrigues, Vaz,  Mourão, Fonseca e Babo

Uma das diferenças mais notórias dizia respeito, sobretudo, ao chamado acompanhamento. Na messe comíamos muito menos vezes arroz do que no rancho geral, onde era servido com tanta frequência que, a partir de certa altura, o pessoal já não podia vê-lo no prato.

Ouviam-se muito as várias emissões de rádio, em Lucunga. (E, agora, perguntarão os sete visitantes que habitualmente vêm ler o que escrevo: mas que raio tem a rádio a ver com o rancho? Já lá chegaremos.)



Nessa época estava na berra o fadista Fernando Farinha, e os programas radiofónicos - uns atrás dos outros – “massacravam” os ouvintes com os seus fados que, apesar de o artista ter um grande reportório, bem como uma excelente voz, acabavam por deixar o pessoal cansado de o ouvir, a tal ponto que logo mudavam de estação quando ele “aparecia”.

E era por isso que, nos dias em que o arroz fazia parte da refeição, se espalhava rapidamente pelo quartel o aviso sarcástico: “Hoje canta o Farinha!”

Acredito que ainda hoje muitos não possam ver arroz na mesa.