Pesquisar neste blogue

segunda-feira, 28 de março de 2011

"Aventura" no RAL 1


RAL 1 - Porta de Armas e Edifício do Comando *



Decidi contar esta “história” depois de ter recebido uma fotografia que me foi enviada pelo então 2º sargento Ramiro, actualmente capitão na reforma, e na qual estão os militares do meu pelotão, durante o período de Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, que precedeu o nosso embarque para Angola.

Quando em Setembro de 1964 me apresentei no RAL 1 fui colocado numa Bateria que era comandada pelo tenente Garcia Leandro, que viria a ter uma bem sucedida carreira político-militar (e agora também escritor, tendo publicado recentemente as memórias do tempo em que foi Governador de Macau), enquanto aguardava a formação do Batalhão.

Alguns camaradas preveniram-me dos cuidados que devia ter porque ele era um militar puro e duro, dos que não toleravam a menor infracção aos regulamentos. Afinal, não era bem assim.

Como sabem os que viveram a tropa naquela época, aos cabos-milicianos (também conhecidos por "sargentos-baratos" por fazerem serviços de sargentos, mas recebendo quinze vezes menos do que estes) quase não era permitido o uso de traje civil e nunca no quartel. Porém, em conversas de caserna, alguns de nós concluímos que no caso de conseguirmos convencer um grupo significativo de camaradas a "esquecer" essa norma, visto que estando a treinar militares mal preparados por uma recruta deficiente, seria muito complicado para a hierarquia aplicar-nos uma punição severa, que iria pôr em causa a formação indispensável ao êxito das operações que nos esperavam em Angola.




 RAL 1 - Casa da Guarda


Não me recordo, hoje, se apenas os cabos-milicianos da minha Companhia – a 738 – aderiram a esta espécie de insubordinação, ou se a adesão foi generalizada a todo o Batalhão. O certo é que passámos a desfardar-nos no nosso alojamento, saindo e entrando calmamente pela porta de armas, mesmo em frente ao edifício do comando.

Em cumprimento do Regulamento o soldado de sentinela na Porta de Armas colocava-se na posição de sentido, como era devido aos sargentos, quando saíamos. Todavia, quando saíamos ou entrávamos no Taunus 17M (último modelo) do Conceição, tínhamos direito a “ombro arma”, situação em que um de nós fazia, com ar displicente e um enorme descaramento, um gesto a mandar descansar.

Aqui faço um parêntesis para explicar que o Conceição era um arquitecto de família abastada, mais velho do que nós 3 ou 4 anos, meio anarquista no comportamento, o que justificava o seu chumbo no Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra, pelo que ditou o seu ingresso no contingente dos cabos-milicianos. Acabou por não ir connosco para Angola, tendo trocado com o Rodrigues que já lá tinha feito uma comissão.

A nossa “insubordinação” não passou despercebida e, algum tempo depois, parecendo ter dificuldade em lidar com a situação, o comandante do RAL 1 tenente-coronel (ou coronel?) Bettencourt Rodrigues – mandou publicar em Ordem de Serviço uma recomendação lembrando o que todos sabíamos já, isto é, que os cabos-milicianos não estavam autorizados a trajar à civil, dentro ou fora do quartel, excepto nos casos previstos no RDM. Acrescentava ainda que o desrespeito pela norma seria severamente punido. Fizemos olhos cegos e orelhas moucas ao aviso que, como esperávamos, não teve consequências.

E, agora é altura de voltar ao "terrível" tenente Garcia Leandro. Algumas semanas depois da formação do Batalhão, e já integrado na CArt 738, a escala de serviço determinava que eu entrasse de sargento de dia à Companhia a um domingo. No RAL 1, o render da parada tinha lugar depois do almoço (às 13 ou 14 horas, não estou certo).


RAL 1 - Edifício da messe (meio escondido, o nosso alojamento)


Quando, depois de gozar meio fim-de-semana, cheguei à porta de armas, pouco antes da hora da formatura, trajando à civil e já com pouco tempo para me fardar, o oficial de dia que ia ser rendido encontrava-se a passar revista a militares que iam sair do quartel. Para não dar nas vistas decidi esperar um pouco, procurando entrar discretamente depois da revista. Todavia, como "aquilo" parecia nunca mais acabar, entrei mesmo, tão “camuflado” quanto possível e, colado à Casa da Guarda, passei sem problema.

O problema surgiu quando constatei a falta do meu único par de botas, que tinha levado para engraxar em casa, e que não estava no saco.

No meu alojamento não havia ninguém que me pudesse emprestar umas botas 42 (era fim-de-semana, como já referi). No alojamento dos praças consegui o empréstimo de um par nº 43 (do mal o menos), mas a precisarem de ser engraxadas, operação para a qual já não tive tempo.

Quando cheguei à parada verifiquei que ia entrar de oficial de dia o tenente Leandro, que já olhava para o relógio. Com as botas naquele estado, fiquei sem pinga de sangue, achando que era desta que, apanhado sem a protecção que o grupo nos dava, vinha uma passa” a caminho.


CArt 738 no RAL 1 - 1º pelotão

Não consigo identificar todos os militares. De pé, estão os graduados, Fonseca, Ramiro, Pereira e Nunes da Silva

(Foto enviada pelo sargento Ramiro)


Dirigi-me a ele de imediato e expliquei-lhe que me tinha esquecido das botas em casa, que já não tinha tido tempo para engraxar as que “tinha” de reserva, o que faria de seguida (e fiz) sem me atrasar para o render da parada. O meu estado de espírito não melhorou quando ele me lançou um olhar gelado e me ordenou que voltasse para a formatura.

Terminado o render da parada mandou-me apresentar no gabinete do oficial de dia. Mas, ao contrário do que eu receava atendendo à sua fama, limitou-se a fazer-me um sermão, menos severo do que seria de esperar, dando a entender que o facto de eu ir embarcar para África dentro de semanas, me livrava de um “louvor”, a vermelho, na caderneta.

Funcionou o factor humano. Afinal, o tenente Garcia Leandro, com fama de implacável, também era um homem sensível e sem o coração de pedra que a voz do “povo“ militar lhe atribuía.

E eu nunca mais me esqueci dele.

* O antigo RAL 1, passou a chamar-se RALIS, durante o PREC e, mais tarde, Regimento de Transportes

As fotos do RAL 1  foram "amavelmente" cedidas pelo Google


quarta-feira, 23 de março de 2011

A Terapeuta

A leitura deste texto publicado pelo "Veterano" no blogue do Batalhão, recordou-me um episódio que situo em Maio de 1965, no qual tive um papel de "relevo", e que à luz dos regulamentos militares poderia ter-me causado sérios amargos de boca, sob a forma de uma exemplar punição disciplinar.


Lagoa do Toto

Numa das deslocações ao Toto para reabastecimento em que fui mais uma vez responsável pela segurança da coluna, veio ter comigo um camarada da CArt 739 dizendo-me que uma rapariga que estava hospedada no “Hotel” do Adão há uma semana, no desempenho da sua actividade profissional, que definirei como “técnicas de terapias sexuais avançadas”, estava interessada, se eu quisesse dar-lhe transporte, em deslocar-se até Lucunga a fim de dar assistência, no âmbito da sua especialidade, aos militares da CArt 738 que estivessem interessados.

Comecei por recusar. Mas depois, pensando melhor (ou pior, depende do ponto de vista), achei que talvez a “coisa” tivesse algum interesse. Não havendo nenhum estabelecimento hoteleiro em Lucunga onde a senhora ficasse alojada, o problema tinha, contudo, solução. Um dos quartos da nossa casa estava temporariamente desocupado porque o Mário Abreu estava de férias, e o outro ocupante tinha sido transferido para outra unidade. Logo, ela podia dormir lá. Se os meus colegas de alojamento discordassem, do que eu, conhecendo-os, duvidava, estava certo de que o comerciante Sr. Santos, resolveria a questão.

As refeições podiam constituir outro entrave. Mas achei que não havia problema em lhas trazer da messe. Afinal, onde comiam vinte podiam comer vinte e um.

Quanto ao local onde exerceria a sua actividade profissional, não faltavam casas devolutas. O edifício onde tinha funcionado a delegação da Junta de Estradas de Angola discretamente situado já à saída de Lucunga, no sentido da Damba, parecia ideal. E foi.

Acompanhei o meu camarada até ao hotel para conhecer a “Lisette”. Apareceu-me uma rapariga loira, bonita e simpática, que dizia ter 28 anos, embora parecesse ter já passado dos 30. Confirmado o seu interesse, expliquei-lhe as condições que a esperavam e ficou acertada a partida, para quando eu regressasse do comando do Batalhão, no Vale do Loge.


A "minha" casa em Lucunga

A chegada a Lucunga foi um acontecimento. Apesar de eu ter feito uma paragem discreta na casa onde ela iria ficar, localizada à entrada da localidade, para a deixar instalada sem alarido, a novidade correu como fogo num campo de trigo seco, com quase toda a gente a querer conhecer a visitante.

Entretanto, fui falar com o oficial que substituía o comandante de Companhia, ausente. Estupefacto, olhava para mim, sem saber bem o que fazer. Acabou por me dizer qualquer coisa no género: “Vamos lá a ver no que é que isto vai dar”!

A visita da “Lisette” acabou por ser um sucesso. É certo que uma reduzida parte do pessoal não recorreu aos seus préstimos. Mas os que compareceram nas “sessões de trabalho” na casa da Junta das Estradas, ficaram tão satisfeitos que muitos repetiram, com inegável benefício para as duas partes. Era visível a satisfação, e até a moral daqueles jovens, isolados no mato há tantos meses, parecia estar em alta.

Por deferência para com os oficiais e sargentos que o desejassem – e também aqui apenas dois ou três não estiveram interessados – a "Lisette" deslocou-se aos respectivos alojamentos, onde tinham lugar as sessões de terapia.

Como é natural, um acontecimento desta natureza não podia fugir ao conhecimento do comandante de Companhia, no seu regresso. Ele nunca falou comigo sobre o assunto, mas segundo as notícias que me chegaram, estaria decidido a levantar autos aos infractores, que forçosamente conduziriam a processos disciplinares com as consequências inerentes. Perante os factos, eu não escaparia a sentir na pele todo o rigor que o RDM previa para estes casos.


Porém, rapidamente o nosso capitão desistiu de qualquer procedimento disciplinar. Se, como era norma, todos os militares punidos fossem transferidos, ele ia ficar sem pelo menos dois terços de efectivos na Companhia. Iria funcionar como? E o alarido que isso não ia levantar nas outras unidades? Acabou por não haver consequências, além da descompostura que alguns oficiais terão ouvido.






Varanda da Flórida
Convívio com militares da CCaç 715

Não termino o meu relato, sem contar outra “historinha”, dentro desta história.

Um dos nossos camaradas – o “Mendonça” -, homem de fortes convicções, não só morais, mas também religiosas, passou os dias daquela semana dividido entre a obediência às referidas convicções, por um lado, e o aguilhão do desejo, por outro.

Compadecido, o furriel “Penas” arquitectou uma solução, contando para isso com a cumplicidade da “Lisette”.

Quase todos os dias, ao fim da tarde, se juntava um grupo na espaçosa varanda da Flórida, que servia de residência a alguns furriéis e sargentos, onde se ia beberricando enquanto se conversava. Num dos últimos dias da sua permanência, a nossa hóspede apareceu nessa tertúlia, aproximou-se do “Mendonça”, puxou-o da cadeira por um braço e conduziu-o para o interior da residência, piscando um olho ao “Penas”.

Poucos minutos tinham passado quando voltaram a sair. O “Mendonça” com o ar enfiado de quem tinha de se confessar na primeira oportunidade; a “Lisette” com o ar de quem tinha levado a barca a bom porto.


P.S. - Os nomes colocados entre "  " são fictícios.









domingo, 20 de março de 2011

Ainda as promoções



Na primeira história que publiquei neste blogue, descrevi o ritual da “investidura” nos novos postos dos militares da Cart 738, recém-promovidos.

Na altura tive pena de não ter qualquer fotografia que ilustrasse a ocasião. Sucede que, durante o convívio dos militares do BArt 741, em 12 do corrente, aquele tema veio à baila e o Sebastião Fagundes, que foi alferes-miliciano e comandante do 4º pelotão da minha Companhia – oficialmente o “pelotão de acompanhamento” -, disse-me que tinha uma fotografia do momento em que o então capitão Rubi Marques lhe colocava os galões nas platinas, prontificando-se a enviar-ma se eu estivesse interessado.

Claro que estava interessado, não só nessa, mas também em quaisquer outras que testemunhem essa época e contribuam para alargar o meu campo de escolha.

Nesta foto consigo identificar em primeiro plano e da esquerda para a direita, os furriéis-milicianos Vaz e Rodrigues e o primeiro-sargento Ramalho, com o rosto meio encoberto pelo capitão Rubi Marques.

Quanto aos restantes camaradas, recordo-me de quase todos mas os nomes “fugiram”. Apenas me lembro do “petit nom” de alguns. Mas talvez seja sensato não os colocar aqui, mesmo sabendo que muitos não se importam.

A propósito deixo-vos um episódio que considero delicioso, do último almoço.

Quando cheguei ao restaurante já lá estavam quase todos, e acabei por me sentar num dos poucos lugares disponíveis ao lado de um camarada de cujo nome não me recordava, embora me lembrasse perfeitamente da alcunha (nem por isso simpática, sobretudo no Norte de Portugal), por que era conhecido (e habitualmente chamado em Angola) sem qualquer azedume da sua parte.

Cumprimentei-o e, pedindo desculpa pelo esquecimento, perguntei-lhe pelo seu nome.

E quando eu estava à espera de um nome e apelido, ele saiu-se com a alcunha de antigamente.

Sorri, e não lhe disse que da alcunha me lembrava perfeitamente.

Finalizo deixando uma palavra de agradecimento ao Sebastião Fagundes pela sua disponibilidade.

quinta-feira, 17 de março de 2011

O correio



O avião do correio (Nord Atlas)

O correio era, sobretudo no isolamento de Lucunga em que não havia qualquer outro meio de comunicação, como já escrevi anteriormente,  factor relevante no nosso bem-estar, bem como uma contribuição importante na manutenção da moral em alta.

Em consequência, não admira que a sua chegada - e distribuição - gerasse um ambiente de grande expectativa, por vezes com alguma ansiedade à mistura. Havia aqueles que tinham sempre cartas ou aerogramas, em maior ou menor quantidade. Mas alguns recebiam menos correspondência, ou mesmo nenhuma, deixando-os tristes e com uma sensação de vazio. Nessas ocasiões, um braço solidário no ombro e uma visita à cantina para uma Cuca ou Nocal fresquinhas, animavam e ajudavam a suportar a desilusão.



Porém, de vez em quando, havia cartas que em vez de animar provocavam situações de depressão aos seus destinatários, ainda que nalguns casos tentassem disfarçar o que lhes ia na alma.

Vou contar hoje três desses casos, sem identificar os protagonistas com os seus nomes verdadeiros.

O Helder Salgueiro era um dos maiores animadores do pessoal, sempre com uma reserva de boa disposição. Por citar o nome da namorada – Francelina - a qualquer pretexto, ou mesmo sem ele, acabou por ser conhecido por “Helder da Francelina”. Julgo que alguns nem sequer conheciam o seu verdadeiro apelido.

Mas como não há bem que sempre dure, os aerogramas da Francelina começaram a rarear a partir de certa altura, deixaram mesmo de chegar. O que chegou foi uma carta da mãe dele, em que lhe dizia que a namorada ia casar com outro rapaz lá da terra.

Naturalmente, a boa disposição do Helder, que já andava em baixo, evaporou-se. Durante algum tempo só o forte apoio dos camaradas evitou que ele se fosse abaixo de todo. Demorou alguns meses, mas o seu característico optimismo acabou por levar a melhor e, mais ou menos cicatrizada, a ferida deixou de ser visível aos nossos olhos. O Helder deixou de ser “da Francelina” e passou a ser o Salgueiro.

O outro caso teve como protagonista o Canas.

O nosso vencimento era pago, se o desejássemos, parcialmente em Angola e parcialmente em Portugal, neste caso até um máximo de dois terços do seu valor. O pagamento em Portugal era feito à pessoa que tivéssemos indicado previamente, podendo ser alterada em qualquer altura. Na maior parte dos casos eram dadas indicações para o pagamento ser feito ao pai, à mãe, ou à esposa do militar, quando casado.

O Canas dera indicação para se efectuar o pagamento à namorada. E tudo corria bem até que, sensivelmente um ano depois de termos chegado a Angola, chegou a fatídica carta: o amor da namorada não resistira à ausência e ela já tinha um novo namorado. Sobre o dinheiro já recebido, nada era dito.

Destroçado, apareceu na nossa casa para desabafar a sua mágoa, ocasião em que nos revelou que era ela quem estava a receber o seu dinheiro desde o princípio da comissão. Com a “esperteza” dos nossos vinte e três anos achávamos que ela lhe ia dar o golpe, ficando com a “massa”, sem que ele pudesse fazer nada. E o nosso conselho foi o de que alterasse imediatamente a situação, nomeando em seu lugar um familiar chegado.

Respondeu-nos que não o faria, e explicou o porquê da decisão. Pensava que se indicasse outra pessoa para receber o vencimento, a ex-namorada podia ficar ofendida pela desconfiança, não lhe entregando o dinheiro entretanto recebido, como forma de retaliação. Assim, com a prova de confiança que, apesar de tudo lhe dava, talvez ela lhe entregasse tudo no fim da comissão.

Talvez ele, que a conhecia (ou julgava conhecer) bem, tivesse razão. Como não voltei a encontrá-lo depois do desembarque, nunca soube como é que acabou este imbróglio. Se algum dia o souber, informarei.

O terceiro caso teve contornos em que conviveram o drama e a farsa.

A família do nosso camarada Jónatas, beirão de gema, não tinha terras, não tinha oliveiras, não tinha vinhas, nem tinha gado. Em suma, era pobre. Por isso, os pais da namorada não viam com bons olhos o namoro da filha com ele que, de seu, apenas tinha a honradez e o amor pela Albertina.


Hospital Militar de Luanda

À medida que o tempo ia passando, as cartas que recebia da namorada relatando as pressões diárias dos pais para acabar o namoro, afligiam-no cada vez mais com consequências no seu equilíbrio mental. E o pior foram as cartas em que ela, também em desespero, começou a referir que os pais queriam, não só que acabasse o namoro com ele, mas também que namorasse e casasse com um outro rapaz, de algumas posses.

Quando o assunto vinha à baila quase todos achávamos, preocupados, que aquilo ainda acabava mal.

Até que uma noite, quando toda a gente se tinha recolhido e já dormia, acordámos em sobressalto com o som de um disparo. A primeira coisa que pensámos foi que estávamos a ser assaltados, e vá de saltar da cama, pegar na arma e sair de casa.

Não havia assalto nenhum. Sem sono, angustiado, o Jónatas agarrou na espingarda FN veio para a rua e disparou.

Quando chegámos junto dele disse-nos que não suportava mais aquela vida, pelo que tinha dado um tiro na testa e que a bala tinha feito ricochete tendo ido fazer um buraco na parede da casa mais próxima. Claro que não houve tiro na testa, nem ricochete nenhum. Ele disparou contra a parede e o buraco estava lá.  Apesar de perturbado, não o estava ao ponto de se matar.

A verdade é que conseguiu ser evacuado para o “Quintas”, como era vulgarmente conhecido o Anexo do Hospital Militar de Luanda para doentes do foro psiquiátrico.

Não sei, porque nunca lhe perguntei, qual foi o seu comportamento enquanto esteve internado para conseguir convencer os médicos da sua insanidade. O que sei é que conseguiu os seus intentos. Algum tempo depois foi dado como incapaz para o serviço militar, e evacuado para Portugal.

Foi remédio santo. Passaram-lhe todos os males e ele e a sua Albertina levaram a sua avante. Tal como nas histórias de príncipes e princesas da nossa infância, casaram, e foram, acredito, muito felizes. Pelo menos pareciam, na última vez que os vi, já lá vão uns anos.

Moral da história: nem sempre o correio que recebíamos fazia bem. Todavia, no caso do Jónatas, acabou por fazer. 

segunda-feira, 14 de março de 2011

25º Almoço-Convívio do Batalhão de Artilharia 741



Aspecto geral da sala

O 25º almoço-convívio dos militares do Batalhão de Artilharia 741, que se realizou no último sábado, nas Caldas da Rainha, constituiu mais um êxito, que ficamos a dever, de novo, ao espírito de camaradagem, bem como à capacidade de organização do alferes Silva Pereira, da CArt 739.

Entre antigos militares e respectivas famílias, estiveram presentes mais de duas centenas e meia de convivas, número que vem confirmar que os convívios realizados a sul de Coimbra são os que têm habitualmente maior afluência.

Mais velhos, mas com a mesma animação com que despachávamos Cucas ou Nocais, nas cantinas das várias Companhias, fomos avivando memórias de episódios que, de um modo ou de outro, contribuiram para a formação do nosso carácter.

Das conversas que fui mantendo com uns e com outros, concluí que o tempo criou alguma (inevitável) erosão, o que justifica que nem todos recordem alguns acontecimentos, ou que, recordando-os, o façam divergindo nos pormenores (que, nalguns casos, são mesmo “pormaiores”). Julgo que isso é natural, na medida em que, de uma maneira geral, não houve a preocupação de escrever diários. No meu caso, para além da memória, às vezes traiçoeira, socorro-me do que escrevia no verso das fotos que enviei para os meus pais, e que - ao contrário das cartas, que desapareceram quando, mais tarde, mudaram de casa -, não levaram sumiço.

Das ausências, merece uma menção especial a do furriel vagomestre da CArt 738, Vaz, que esteve presente em todos os 24 convívios anteriores. Motivos de força maior impediram a sua comparência desta vez. Todos (sobretudo no que se refere ao pessoal da CArt 738) sentimos a sua falta, e fazemos votos para que em 2012 possamos voltar a usufruir do seu dinamismo, e do seu peculiar sentido de humor.

Publico aqui algumas das fotos que me foram enviadas pelo Carlos Cristóvão, furriel da CCaç 715, da Missão do Bembe, que na continuação de uma amizade que teve início em Janeiro de 1965, mais uma vez nos honrou com a sua presença. As restantes são de minha autoria, esperando que relevem as amadorísticas deficiências de ordem técnica.


Mesa da organização



Os antigos sargentos (hoje capitães na reforma), Ferreira da Silva e Ramiro, também conhecidos como tropas de 1ª linha 


Duarte (mais conhecido por Lisboa), Carlos Bragança e Lobo (mais conhecido por Cigano)


Rubi Marques (comandante da CArt 738), e Alves (o melhor clarim que alguma vez ouvi tocar na tropa)


Casimiro e Carlos Cristóvão


O baile


A apanhar ar


Duarte, (?), Pereira, Fagundes e Carlos Cristóvão


Casimiro, Rubi Marques e Pereira


De pé: Fonseca; Sentados: Esposa do Duarte, Duarte e Bragança
(Foto de carlos Cristóvão)


Fagundes e Pereira
(Foto de Carlos Cristóvão)


De pé: Lobo e Carlos Cristóvão; Sentados: Ferreira da Silva e Ramiro


Fonseca e Carlos Cristóvão


Ramiro, Silva Pereira e Carlos Cristóvão


Bolo do aniversário da nossa chegada a Lisboa

quarta-feira, 9 de março de 2011

O Poder Dissuasor da Catana

Havia uma norma no Exército segundo a qual “o Serviço de Justiça prefere a todos os outros serviços”. No Norte de Angola, embora não houvesse nenhuma determinação contrariando aquela norma, era a segurança que, em qualquer circunstância, estava acima de qualquer outra norma.

No quartel, além de todos sabermos quais eram as posições a ocupar no caso de se verificar qualquer ataque, havia uma vigilância permanente a partir de quatro “torres” de vigia situadas em locais estratégicos.

Durante a noite havia quatro militares do pelotão que estivesse de serviço interno a pernoitar em cada “torre”, que se iam revezando de acordo com uma escala previamente definida, na vigilância da sua área. Enquanto um se mantinha alerta, os outros três podiam dormir.

Para garantir o efectivo cumprimento do serviço, o comandante de pelotão, bem como os comandantes de secção, faziam serviço de ronda permanente, de duas horas cada, com início às vinte e duas horas.

Gozando da prerrogativa que o posto lhe dava o alferes comandante do pelotão escolhia sempre o primeiro turno de ronda, o que lhe permitia ir para a cama à meia-noite e dormir o resto da noite descansado. De um ponto de vista formal, os furriéis podiam fazer valer a sua antiguidade na escolha do horário da ronda (como todos tínhamos o mesmo tempo de serviço, a antiguidade era atribuída em função da classificação obtida no Curso de Sargentos Milicianos), mas o usual era sortearmos o horário que cabia a cada um.


Fonseca, Vaz e Miranda Dias, com torre de vigia ao fundo

A ronda, que era feita num “jeep Willys”, além dos postos de vigilância já citados incluía passagens pela pista de “aviação” onde, de vez em quando, aterravam pequenos aviões, e que ficava dentro do perímetro delimitado pelo arame farpado.

Alguns camaradas dispensavam o condutor da viatura e conduziam eles o jeep durante o respectivo turno. Também o conduzi uma vez ou outra (embora, por uma questão de prudência, não dispensasse a presença do condutor), até à noite em que senti as rodas a quererem levantar voo, ao dar a volta no topo da pista. Cessaram aí as minhas aventuras de condução em Lucunga.

Por vezes, ao chegar a um posto, verificava-se que o sentinela de serviço tinha adormecido. Era uma situação complicada para o graduado, que tinha de tomar a decisão de participar como era seu dever, ou de apenas dar uma “rabecada” ao prevaricador e não participar, sabendo, porém, que se isso chegasse ao conhecimento do comandante da Companhia, era ele quem levava uma “passa”.

Atendendo a que a falta de vigilância punha em risco toda a segurança do quartel, o capitão Rubi Marques era inflexível nestes casos: mandava instaurar o respectivo auto, e acabava punindo o infractor com cinco dias de prisão, que constituía o máximo da sua competência disciplinar.


Ao fundo, à direita, a pista (junto à pista pode ver-se uma torre de vigia)

Entretanto, depois de receber o processo o comandante de Batalhão, tenente-coronel Cabrita Gil, agravava a punição para dez dias de prisão, que correspondia igualmente ao máximo da sua competência.

Todavia, não havendo prisão em Lucunga, onde cumpria o militar a sua pena? Na prática não cumpria. A punição acabava por ser vantajosa para o infractor. Estando preso para todos os efeitos, não prestava qualquer espécie de serviços. Nem sequer ia para a mata. Se o pelotão a que pertencia fosse destacado para operações, ele ficava no quartel de papo para o ar, sem correr qualquer risco, nem sofrer os incómodos inerentes.

Rapidamente o nosso comandante se apercebeu de que este tipo de castigo não era suficientemente dissuasor, pelo que resolveu passar por cima dos regulamentos e tomar medidas adicionais. Sempre que o pelotão do militar castigado saísse para operações, ele também saía, mas não levava a espingarda FN: a sua única arma era uma catana.

A decisão que o nosso capitão tomou era particularmente dura, e muitos de nós não concordávamos com ela porque a achávamos muito arriscada. Mas, na realidade, nada podíamos fazer para a contrariar, a não ser dar a melhor protecção possível ao alvo do castigo.

E a verdade é que os adormecimentos dos sentinelas passaram a ser muito raros. Também aqui se confirmou a velha máxima: Quem tem “sim-senhor” tem medo!




sábado, 5 de março de 2011

Dr. António Terrinha


Dr. Terrinha, em primeiro plano
(Foto "roubada" ao blogue do Batalhão (http://batalhaodeartilharia741.blogspot.com)

No decorrer de um jogo de futebol em Lucunga que teve lugar num dos últimos dias de Julho de 1965, fui rasteirado por um dos tais “três pés” a que me referi anteriormente, e caí violentamente sobre o meu braço direito.

Sentindo fortes dores e receando ter feito uma fractura desloquei-me ao posto médico. Depois de examinar o braço o alferes-médico Dr. Salazar Leite, concluiu que não havia fractura, mas apenas uma contusão.

Todavia, a dor teimava em não desaparecer e, além disso, piorava quando eu tentava fazer qualquer esforço com a mão direita. O Dr. Leite insistia que não havia fractura e parecia que estávamos num beco sem saída.

A situação começava a complicar-se porque (por demais sabia eu como “funcionavam” as coisas nestas circunstâncias) não tardariam as insinuações de que estaria a tentar “baldar-me” às saidas para operações.

Entretanto, no princípio de Agosto – creio que no domingo, 8 – deslocou-se a Lucunga uma delegação da CART 739, aquartelada no Toto, para umas horas de convívio. Como era hábito, houve futebol de manhã, jogo em que por estar lesionado não alinhei, seguido de farto almoço (cozido à portuguesa, nas messes), onde fui dos primeiros a alinhar.

Da comitiva da CArt 739 fazia parte o alferes-médico Dr. António Terrinha que, a pedido do Dr. Leite, examinou o meu pulso não demorando a fazer o seu diagnóstico: eu tinha fracturado um dos ossos do pulso e, na sua opinião, deveria ser evacuado para o Hospital Militar de Luanda para fazer o necessário tratamento.


Quartel do Toto - edifício do comando
(Foto obtida na internet, de autor desconhecido)

Voei para Luanda a bordo de um Nord Atlas da Força Aérea, e depois de radiografado no Hospital Militar confirmou-se o diagnóstico de fractura, tendo acabado por ficar em Luanda quase cinco semanas em tratamento.

Às vezes, quando volto a este assunto, ainda dou por mim a pensar no que teria acontecido se não fosse a providencial visita a Lucunga do pessoal da CArt 739.

Outro episódio em que o Dr. Terrinha voltou a ter um papel relevante, teve lugar um ano depois, em Agosto de 1966, já a CArt 738 estava na Gabela, e eu fui a uma consulta de Oftalmologia a Luanda.

Da Gabela para Luanda consegui boleia evitando fazer a desconfortável viagem no machibombo da carreira, que levava o dia inteiro para fazer o percurso.

Porém, apesar de ter corrido todas as capelinhas onde era hábito “pararem” os gabelenses (ou residentes em localidades próximas) quando iam a Luanda, não consegui encontrar ninguém que fosse para os lados da Gabela ou, ao menos, alguém que me desse boleia até à Quibala. Daí para a Gabela já era mais fácil arranjar transporte.

Desapontado perante a incómoda viagem que me esperava no dia seguinte, entrei na Cervejaria Amazonas para me compensar antecipadamente com um lauto jantar. Ao entrar vi sentado a uma mesa o Dr. António Terrinha com a esposa e os filhos (que, se a memória não me atraiçoa, eram dois). A seu convite ocupei um lugar à mesa e, durante a conversa, acabou por vir a lume a minha “desdita”.

Não me recordo, naturalmente, dos termos exactos da sua proposta. Mas, mais palavra, menos palavra, o que me disse, foi:

“Ó Fonseca eu vou amanhã para o Calulo onde, como sabe, está um pelotão da sua Companhia. Você vai comigo e, para todos os efeitos, está apresentado na sua unidade. Quando chegarmos, o Casimiro - era o alferes comandante do pelotão - manda um rádio para a Gabela a dar conta da sua apresentação. E depois, como todas as semanas há viaturas a circular uma ou duas vezes, entre a Gabela e o Calulo, você chega à Gabela em menos de dois dias.”

Embora o “esquema” não me parecesse muito regular (ainda por cima o comandante de Companhia era o Cap. Carvalho que não morria de amores por mim), a verdade é que eu já estava por tudo para não ter de viajar no machibombo. Não foi, por isso, muito difícil deixar-me convencer. E, aproveitando a boleia, lá fui no dia seguinte para o Calulo, que não conhecia.


Rua do Calulo
(Foto obtida na internet, de autor desconhecido)

E, no fim, os factos deram razão ao Dr. Terrinha. Tudo se passou exactamente como ele previra. Ainda não foi daquela que levei com o “auto das passas”.

Neste texto, mais do que contar duas experiências da minha vida militar em Angola, pretendo evocar e prestar a minha homenagem a um homem bom e generoso, que a morte levou prematuramente.

Era um ser humano com qualidades que o distinguiam entre os seus pares.