Havia uma norma no Exército segundo a qual “o Serviço de Justiça prefere a todos os outros serviços”. No Norte de Angola, embora não houvesse nenhuma determinação contrariando aquela norma, era a segurança que, em qualquer circunstância, estava acima de qualquer outra norma.
No quartel, além de todos sabermos quais eram as posições a ocupar no caso de se verificar qualquer ataque, havia uma vigilância permanente a partir de quatro “torres” de vigia situadas em locais estratégicos.
Durante a noite havia quatro militares do pelotão que estivesse de serviço interno a pernoitar em cada “torre”, que se iam revezando de acordo com uma escala previamente definida, na vigilância da sua área. Enquanto um se mantinha alerta, os outros três podiam dormir.
Para garantir o efectivo cumprimento do serviço, o comandante de pelotão, bem como os comandantes de secção, faziam serviço de ronda permanente, de duas horas cada, com início às vinte e duas horas.
Gozando da prerrogativa que o posto lhe dava o alferes comandante do pelotão escolhia sempre o primeiro turno de ronda, o que lhe permitia ir para a cama à meia-noite e dormir o resto da noite descansado. De um ponto de vista formal, os furriéis podiam fazer valer a sua antiguidade na escolha do horário da ronda (como todos tínhamos o mesmo tempo de serviço, a antiguidade era atribuída em função da classificação obtida no Curso de Sargentos Milicianos), mas o usual era sortearmos o horário que cabia a cada um.
Fonseca, Vaz e Miranda Dias, com torre de vigia ao fundo
A ronda, que era feita num “jeep Willys”, além dos postos de vigilância já citados incluía passagens pela pista de “aviação” onde, de vez em quando, aterravam pequenos aviões, e que ficava dentro do perímetro delimitado pelo arame farpado.
Alguns camaradas dispensavam o condutor da viatura e conduziam eles o jeep durante o respectivo turno. Também o conduzi uma vez ou outra (embora, por uma questão de prudência, não dispensasse a presença do condutor), até à noite em que senti as rodas a quererem levantar voo, ao dar a volta no topo da pista. Cessaram aí as minhas aventuras de condução em Lucunga.
Por vezes, ao chegar a um posto, verificava-se que o sentinela de serviço tinha adormecido. Era uma situação complicada para o graduado, que tinha de tomar a decisão de participar como era seu dever, ou de apenas dar uma “rabecada” ao prevaricador e não participar, sabendo, porém, que se isso chegasse ao conhecimento do comandante da Companhia, era ele quem levava uma “passa”.
Atendendo a que a falta de vigilância punha em risco toda a segurança do quartel, o capitão Rubi Marques era inflexível nestes casos: mandava instaurar o respectivo auto, e acabava punindo o infractor com cinco dias de prisão, que constituía o máximo da sua competência disciplinar.
Ao fundo, à direita, a pista (junto à pista pode ver-se uma torre de vigia)
Entretanto, depois de receber o processo o comandante de Batalhão, tenente-coronel Cabrita Gil, agravava a punição para dez dias de prisão, que correspondia igualmente ao máximo da sua competência.
Todavia, não havendo prisão em Lucunga, onde cumpria o militar a sua pena? Na prática não cumpria. A punição acabava por ser vantajosa para o infractor. Estando preso para todos os efeitos, não prestava qualquer espécie de serviços. Nem sequer ia para a mata. Se o pelotão a que pertencia fosse destacado para operações, ele ficava no quartel de papo para o ar, sem correr qualquer risco, nem sofrer os incómodos inerentes.
Rapidamente o nosso comandante se apercebeu de que este tipo de castigo não era suficientemente dissuasor, pelo que resolveu passar por cima dos regulamentos e tomar medidas adicionais. Sempre que o pelotão do militar castigado saísse para operações, ele também saía, mas não levava a espingarda FN: a sua única arma era uma catana.
A decisão que o nosso capitão tomou era particularmente dura, e muitos de nós não concordávamos com ela porque a achávamos muito arriscada. Mas, na realidade, nada podíamos fazer para a contrariar, a não ser dar a melhor protecção possível ao alvo do castigo.
E a verdade é que os adormecimentos dos sentinelas passaram a ser muito raros. Também aqui se confirmou a velha máxima: Quem tem “sim-senhor” tem medo!
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