Pesquisar neste blogue

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Café Central (II)



O Café Central, numa foto de tempos mais recentes (como se pode comprovar pela falta de asfalto na rua), e com a cara lavada

O Café Central, que era habitualmente designado pelos gabelenses por Bar Central, dispunha de um espaço para jogos de cartas. Ficava situado do lado direito de quem entrava, ao fundo. Era muito utilizado pelos cartolas locais, que disputavam renhidas partidas, não necessariamente a feijões.

As cartas eram fornecidas pelo Café, contra pagamento do correspondente “barato” (em rigor, o “barato” era uma percentagem sobre os ganhos do jogo, que era paga ao dono da casa. Neste caso, tinha um custo fixo, e funcionava como uma espécie de aluguer das cartas).

Uma noite, eu e mais três camaradas resolvemos “armar aos cágados” e sentámo-nos numa das mesas para jogarmos king (a um centavo o ponto, para dar mais animação ao jogo).

Quando resolvemos dar por findo o serão, chamámos o empregado para recolher as cartas e cobrar o “barato”, cujo custo desconhecíamos, porque, por manifesta imprevidência, não nos tínhamos informado previamente. Para nosso espanto, pediu-nos vinte escudos por cabeça. Ficámos autenticamente atordoados, pois nunca pensámos que a jogatana nos ficasse por mais de dez escudos, em vez dos oitenta que foram cobrados.

Hoje, vinte escudos não dariam para comprar nada. Mas, para fazerem uma ideia, em 1966 , que era o ano em questão, um almoço no restaurante do Hotel Praia-Mar, em Novo Redondo, composto por entrada, prato de peixe, prato de carne, sobremesa, vinho, pão e café, ficava-nos por doze escudos e cinquenta centavos. E o serviço era de primeira qualidade.

Pagámos, mas, furiosos por nos julgarmos logrados pelo elevado preço dispendido, ficámos a fazer planos de desforra. E, se não nomeei os meus parceiros, foi porque a “vingança” que arquitectámos – e que levámos a cabo, sem medir as consequências –, não nos daria nenhum louvor se chegasse ao conhecimento da hierarquia militar.

As instalações do café eram amplas e tinham uma espécie de balcão-vitrina a dividir a sala ao meio. Nessa vitrina, a cujo interior se acedia através de portas de correr, envidraçadas e sem fechadura, estavam expostos vários produtos, entre os quais caixas de bombons e tabletes de chocolate.

E foram as tabletes o alvo da nossa “operação”, para a qual contámos com a colaboração de outros camaradas no papel de figurantes e de biombos. Ocupando mesas de um lado e de outro da vitrina, aproveitávamos as ocasiões mais propícias e subtraiamos algumas tabletes, que distribuiamos entre todos.

Estes “golpes de mão” tiveram lugar três ou quatro vezes, com intervalos mínimos de uma semana, para não darmos nas vistas, tendo terminado quando nos considerámos ressarcidos do que achávamos ter sido uma espoliação abusiva, e com a intenção de nos afastar do local de jogo, talvez com receio de que viessemos a revelar os valores envolvidos.

Sem que isso sirva de justificação, nem é esse o meu propósito, a nossa juventude bem como as circunstâncias especiais em que nos encontrávamos, ajudam a explicar os disparates que fazíamos, e de que este é um exemplo, mas não o único.

E, por falar em disparates, qualquer dia conto a história dos cabritos que pediam boleia.

domingo, 25 de setembro de 2011

Café Central (I)

(Clique na imagem para aumentar)

Da esq. para a dta.: Azevedo, Nunes da Silva, o autor do blogue e o Vaz;
Ao fundo, o Café Central; à dta., onde vai a passar um civil, a linha férrea que ligava a Gabela a Porto Amboim;

O Café Central, o maior e o melhor café da Gabela, era frequentado pela nata da sociedade gabelense, principalmente na sua componente masculina.

Não era raro, sobretudo quando a chuva chegava no tempo conveniente, e a colheita de café se adivinhava frutuosa, ver os fazendeiros amesendados, a despacharem travessas de camarão (às vezes, no que poderia parecer uma manifestação de novo-riquismo, regadas a uísque).

Mas, se trago hoje o Café Central ao blogue é para relatar o primeiro de dois episódios, em que fui um dos intervenientes, e que ali tiveram lugar.

No grupo de fazendeiros acima referidos, tentava (e aos poucos ia conseguindo) introduzir-se um jovem, que andaria pelos trinta anos, e que tinha sido “graduado” em fazendeiro, por ter caido nas boas graças (e na cama) da patroa, viúva recente, cuja mocidade já passara há muito, e que o promovera a gerente do negócio.

Embora os outros o gozassem quando se encontrava ausente, iam-no tolerando, talvez como prémio pelos esforços que fazia para lhes agradar, que incluiam com alguma frequência o pagamento dos lanches.

Numa dessas tardes, entrei no café com dois camaradas, e sentámo-nos perto da mesa onde o nosso homem estava, com o grupo, sentado de costas para nós.

Nesse ano de 1966, estávamos já longe da euforia com que foram saudados os primeiros batalhões chegados a Luanda, em 1961, recebidos apoteoticamente pela população civil, que, borrada de medo, os acolheu festivamente, proporcionando-lhes bastas mordomias (incluindo hospitaleiros convites para as suas residências, nalguns casos com consequências inesperadas). Em suma, eram uns heróis ainda antes de irem para o mato (e, se não chegaram a ser heróis, demonstraram pelo menos uma enorme capacidade de sacrifício, em condições particularmente adversas).

Cinco anos depois, em 1966, e já com as costas quentes, uma parte da população branca dizia, à boca pequena que se a guerra ainda não tinha terminado, era por conveniência dos militares, que queriam prolongá-la porque ganhavam bom dinheiro com o conflito.

É certo que em determinadas situações e graduações, havia quem abichasse fartos proventos. Mas essa não era a regra e, tal como eu, a esmagadora maioria da tropa estava lá por obrigação.

Foi neste contexto, que o nosso jovem “fazendeiro”, que não se tinha apercebido da nossa entrada, afirmava, alto e bom som, que se as autoridades angolanas dessem carta branca à população civil, e mandasse embora os chulos que os andavam a sugar, há muito que o terrorismo tinha acabado.

Não gostando do que ouvimos, resolvemos que um de nós iria pedir-lhe satisfações pelo que estava a dizer. Não chegando a acordo sobre qual de nós iria, pois todos queríamos ir, recorremos ao velho jogo da “porra”.

Quando o “premiado” chegou ao pé dele, lhe tocou no ombro, e lhe perguntou se se importava de o acompanhar até à rua para terem um particular sobre o que ele acabava de afirmar, o homem ficou branco. Perante o silêncio expectante dos outros, tartamudeou que devia haver um mal entendido, que não pretendia ofender ninguém, muito menos a nós, militares, por quem tinha a maior consideração e respeito, e que a “última coisa que queria era ofender o senhor furriel”, pelo que não havia motivo para brigas.

A resposta foi de que não havia briga nenhuma. O que haveria, se sonhássemos que ele alguma vez voltava a levantar calúnias a nosso respeito, era um “focinho” partido. O dele.

Ganhámos” um amigo que, fazendo das tripas coração, de cada vez que nos encontrava se desfazia em cumprimentos e mesuras. E, quando no Natal seguinte inaugurámos a Casa do Soldado, teve a gentileza de oferecer uma caixa de bebidas para o bar.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Cine Amboim


O Cine Amboim em dia de enchente

A sala de espectáculos da Gabela – o Cine-Amboim – apresentava sessões de cinema às terças, quintas, sábados e domingos. Ao domingo havia duas sessões, e o filme era o mesmo que tinha passado no sábado.

Como não tínhamos muitas distracções, quando o filme era bom (ou nós, talvez críticos pouco exigentes, achávamos que era) iamos ao cinema no sábado e no domingo.

Além da apresentação de filmes, tinham periodicamente lugar espectáculos musicais – hoje chamar-se-iam concertos – onde actuavam artistas em digressão por Angola. Nestes casos, não se tratava de artistas contratados para actuarem expressamente para as Forças Armadas. O espectáculo destinava-se a todos, e todos pagavam bilhete, incluindo naturalmente os militares que quisessem assistir.

Recordo-me de terem actuado na Gabela durante o ano de 1966, entre outros, Tony de Matos, Luís Piçarra, Paula Ribas e o Trio Odemira. À excepção do Trio Odemira que se auto-acompanhava, o acompanhamento musical era feito com música gravada, o que, uma vez ou outra, dava lugar a alguma descoordenação entre o cantor e o operador que nos bastidores ligava e desligava o gravador. Mas tudo se resolvia rapidamente e o espectáculo continuava, habitualmente com a sala cheia.

A apresentação em palco era feita pelo Francisco Morgado, alferes-miliciano da Cart 738. O alferes Morgado tinha experiência da função por ser locutor da Rádio Ribatejo. Aficionado da tauromaquia, foi durante muitos anos (não sei se ainda é) a voz que comentava as corridas de touros transmitidas pela RTP.

O Cine-Amboim não tinha balcão, mas dispunha de um pequeno número de frisas – oito ou dez – num patamar um pouco mais elevado, antecedendo a plateia. À frente, junto ao palco e à tela, dispunha de duas filas de bancos corridos.


Alferes-miliciano Francisco Morgado
(Foto "roubada" ao Veterano)

Espectador novato do Cine-Amboim, e tendo-me sentado na última fila, não me apercebi logo da existência dos bancos corridos. Daí a minha surpresa quando vi começarem a entrar por uma porta situada ao fundo, do lado esquerdo do palco, numerosos espectadores, que se sentaram nos referidos bancos. Eram todos negros que, vim a saber depois, pagavam um preço inferior ao dos espectadores que se sentavam na plateia ou nas frisas.

Racismo descarado, pensei eu, surpreendido, quer pela forma evidente como se apresentava, quer por sê-lo à vista de toda a gente, contrariando o que era a política oficial vigente, anunciada aos quatro ventos, incluindo os areópagos internacionais.

Não era apenas por serem negros que aqueles espectadores eram relegados para os bancos corridos.

(António Almeida, era provavelmente o mais importante empresário da Gabela, e era negro, o que não impedia que, se fosse ao cinema, ficasse comodamente instalado numa frisa, juntamente com a sua família. O Administrador do Concelho – de cujo nome não me recordo – era um negro, cabo-verdiano, que, acompanhado pela esposa, ocupava habitualmente uma das frisas.)


Luís Piçarra canta "Morena da Raia"

Os negros que residiam nas sanzalas, e que iam para os bancos corridos, eram duplamente segregados. Sentavam-se ali, não só por serem negros, como antes afirmei, mas também porque, além de serem negros, eram pobres. Era uma espécie de racismo social, que de resto, também se manifestava com frequência no Portugal europeu, no modo como eram tratados os mais pobres.

No fundo, quase todos nós o praticávamos, às vezes sem disso nos apercebermos, o que não serve de desculpa, formas de racismo.

Mas também é certo que, responsáveis ou não, acabámos, directa ou indirectamente, por pagar um elevado preço por esse comportamento.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Coronel José Francisco Soares


Coronel José Francisco Soares

(Foto de Veterano)


Passou ontem um ano sobre a data da morte do coronel José Francisco Soares, que foi, sucessivamente, segundo-comandante, ainda com o posto de major, e, já tenente-coronel, comandante do Batalhão de Artilharia 741.


Na ausência do tenente-coronel Cabrita Gil, que na altura exercia as funções de segundo-comandante de um Batalhão colocado em Zala – à época uma das zonas operacionais mais difíceis e perigosas do Norte de Angola – coube ao então major Soares a árdua tarefa de coordenar o treino operacional dos militares do BArt 741, durante os meses que antecederam o nosso embarque.


Dadas as muito diferentes funções e postos que tínhamos no Batalhão, não tive um relacionamento próximo com ele, quer antes de embarcarmos, quer durante a permanência do comando no Vale do Loge.


No entanto, não pude deixar de registar que, nos contactos que mantinha com os militares do Batalhão, independentemente da sua graduação, vinham ao de cima os valores humanistas que marcavam a sua forma de estar. Como sabem os que, pelo menos nesse tempo, fizeram o serviço militar, essa não era a prática corrente dos oficiais superiores.

Para não tornar demasiado longo este texto, vou aqui deixar dois dos episódios em que fui interveniente, e que de alguma forma ilustram o que acima escrevi.


De uma das vezes em que me desloquei em serviço a Novo Redondo, onde se situava a sede do Batalhão, sentei-me numa esplanada daquela cidade acompanhado por dois furriéis da CCS, e enquanto iamos conversando sobre “a chuva e o bom tempo”, aproveitámos para beber uns “finos”, antes de eu regressar à Gabela.


A dada altura vimos o tenente-coronel Soares que se aproximava do lugar onde estávamos. Depois de nos levantarmos e de fazermos a saudação da ordem, mandou-nos sentar e sentou-se também na nossa mesa, ficando connosco, numa conversa amena, enquanto esperava pela esposa, que se encontrava num cabeleireiro, localizado em frente.

Quantos oficiais com o seu posto e responsabilidades de comando eram capazes de um gesto semelhante? 


Alguns meses mais tarde, o comando do Batalhão foi transferido para o Lobito, quase de um dia para o outro. Não podendo o quartel de Novo Redondo ficar desocupado, foi decidido que a minha Companhia enviaria para lá um pequeno destacamento (cerca de 20 militares), enquanto o comando da Companhia não se mudasse para lá. Claro que, como sempre acontecia quando apareciam estes serviços extraordinários (e não era prémio, embora neste caso tenha sido, se bem que involuntário), lá fui eu comandar esse pequeno grupo.


Durante a nossa estadia, cerca de metade do pessoal estava ocupado com o serviço de funcionamento do quartel. Para que os outros não ficassem sem fazer nada, resolvi que o melhor seria levá-los para a praia, que ficava a 300 ou 400 metros do quartel, e dar-lhes instrução (de banhos marinhos e de muito trabalho para o bronze).

Num desses dias, a meio da manhã, estava eu a nadar quando ouço alguém a chamar-me e, quando olho, vejo à beira da água o motorista do tenente-coronel Soares, dizendo que o comandante estava à minha espera na Marginal, junto ao Land-Rover, depois de ter ido ao quartel e de lhe terem dito que eu estava na praia.

Lá vim eu a correr e a escorrer água, enquanto ia engrolando uma justificação qualquer, que o nosso comandante não se mostrou interessado em ouvir. O que ele pretendia era que eu assinasse a guia de marcha, comprovando que “o Exmo. Comandante passou por esta unidade”. O que fiz em cima do capot. E ele seguiu viagem, desejando-me “boa praia”, com um sorriso.

Não creio que houvesse muitos, pelo menos dos que conheci, que no seu lugar se tivessem mostrado tão tolerantes.



Que descanse em paz, este Homem bom!



P.S. - Na altura da sua morte, o Veterano homenageou o nosso comandante com um texto que pode ser lido aqui.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

CISMI - TAVIRA


(Clique para aumentar)



Fujo hoje ao tema deste blogue, que consiste, como sabe quem o frequenta habitualmente, no relato de pequenas histórias vividas durante a comissão de serviço que fiz em Angola de 1965 a 1967. Resolvi fazê-lo, em primeiro lugar, porque esta é também a história de como tudo começou. Em segundo lugar, porque me dá a oportunidade de referir as circunstâncias em que, por uma curiosa coincidência, ouvi falar pela primeira vez no primeiro comandante do Batalhão de Artilharia 741.

Tinha planeado publicar este texto em 9 de Agosto último, data em que se completaram 48 anos sobre a data em que me apresentei no CISMI (Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria), em Tavira, para iniciar o cumprimento do meu serviço militar obrigatório, que viria a terminar em 23 de Fevereiro de 1968, mais de quatro anos e meio depois.

Porém, encontrando-me naquela data ausente da minha residência habitual, concluí, tarde demais, que embora tivesse copiado para uma pen os ficheiros de que iria necessitar, tinha falhado a cópia da fotografia do meu pelotão da recruta, que considero ser um testemunho indispensável.

Na referida fotografia, que encima este post, estão os soldados-instruendos (também havia quem nos chamasse “soldados-milicianos”) que faziam parte do 2º pelotão, da 3ª Companhia.

Não me recordo do nome de todos (nem ando lá perto) e, para agravar a situação, lembro-me de nomes que não consigo ligar a nenhum destes rostos. Dos esquecidos destaco, lamentando o meu esquecimento, o Alberto Villaverde Cabral, não por ter sido uma figura pública com largo destaque na Comunicação Social a seguir ao 25 de Abril de 1974, mas por pertencer ao grupo que me era muito próximo.

Outro dos meus amigos “tavirenses” era o jovem que na foto aparece identificado com o nº 20. Respondia pelo nome de Mário Cabrita Gil (era fanático do “braço de ferro”, que praticávamos numa das longas mesas existentes no corredor da caserna), e nenhum de nós imaginava que o pai dele, de quem raramente falava, mas o suficiente para eu saber quem ele era, viria a ser o primeiro comandante do meu Batalhão, em Angola.

O Cabrita Gil saiu de Tavira no fim da recruta porque, para suprir a falta de oficiais, o Exército seleccionava os que mais se distinguiam - quer pelo aproveitamento teórico e desempenho físico, quer pela chamada “aptidão militar” - na recruta do Curso de Sargentos Milicianos, para frequentarem o Curso de Oficiais Milicianos. Creio que dos cerca de 900 recrutas do meu Curso não terão sido escolhidos mais de 20. Desses, dois pertenciam ao meu pelotão: o Cabrita Gil, e o jovem que identifico com o nº 32, um portuense cujo nome não recordo.


Tenente-Coronel Cabrita Gil

(Foto "rapinada" ao blogue do Batalhão)

A má língua da caserna (que aparece sempre nestas alturas, invariavelmente acompanhada pela inveja), murmurava que o Cabrita Gil tinha sido escolhido por influência do pai, e não por mérito próprio. Julgava então, e continuo a julgar hoje, que qualquer dos dois camaradas escolhidos o foram por mérito pessoal absoluto, não tendo havido qualquer espécie de favoritismo na sua selecção.

Depois de terminada a recruta, cada um foi à sua vida e não voltei a ter notícias do Mário, o que quer dizer que nunca pude devolver-lhe o livro de Almeida Garrett que me emprestara, e que não aceitou que lhe devolvesse, porque ainda não terminara a leitura. Ficava para depois, quando nos encontrássemos, dizia ele. Não houve depois, porque nunca mais o vi.

O nº 2 da fotografia é o Vacas (de Carvalho?), um jovem de Montemor-o-Novo que era pegador de touros no Grupo de Forcados da terra, e tinha fotos do Grupo que o comprovavam. Mas o Matos (nº 10) ,que era lá da zona, dizia, achávamos que para se meter com ele, que ele só se vestia de forcado para tirar o retrato.

Com o nº 5 na foto está o Carvalho, que logo no primeiro dia me perguntou se eu não tinha um aloquete a mais. Sabia lá eu que um aloquete era o mesmo objecto a que eu chamava cadeado! Mais tarde, em Janeiro de 1965, fizemos uma festa quando nos reencontrámos em Angola, na Missão do Bembe.

Os nºs. 6 e 7 são os casapianos Olivério e Vítor, respectivamente.

Uma tarde, estávamos na esplanada do Imperial e eu tinha acabado de escrever uma carta, quando o Vítor me disse que eu devia gostar muito de escrever cartas, porque passava a vida a fazê-lo. O que lhe dava jeito, dizia ele, sem saber no que se metia, era que lhe escrevesse uma carta para a namorada, já que ele estava em falta e cheio de preguiça. Eu disse que o faria, mas que ela iria ver que não era a letra dele. “Escreve em maiúsculas”, respondeu ele. “Tudo bem”, retorqui, “mas tu não lês o que eu vou escrever”. “Quero lá saber!”

E eu escrevi. Passados quatro ou cinco dias veio ter comigo com uma encomenda postal na mão, a perguntar que raio é que eu tinha escrito, porque a namorada lhe tinha mandado um pacote com 20 maços de cigarros e uma nota de cinquenta escudos. Pagou-me o jantar no “Sofrutos”, que não era caro e onde se comia bom peixe.


O Quartel de Tavira, continua hoje como era há 48 anos. Mas já não é o CISMI. Hoje é o Regimento de Infantaria nº 1 (quase sem guarnição, ao que me dizem)

(Foto de António Alba)

O 8 era o Carlos Aparício (um viseense que era afilhado de um escritor que eu muito admirava, e admiro: Aquilino Ribeiro), artista de rara sensibilidade, que fez o meu retrato a carvão. Está de sapatilhas porque tinha ido a “doentes” , por ter bolhas de água nos pés (ir a “doentes”, muitas vezes era feito apenas para nos baldarmos aos extenuantes exercícios de Aplicação Militar. Mas, em contrapartida, doente ou não, ficava-se cinco dias a “convalescer”, sem poder sair do quartel).

O nº 12 era o Manuel Palma. Alentejano de Corte do Pinto (Mértola), residia com os pais em Campo de Ourique e, nesse 9 de Agosto, tinha família e amigos a despedirem-se dele no cais da Estação de Sul e Sueste. Quando vi tanta gente a despedir-se, cheguei ao pé dele e perguntei-lhe: “É pá, se isto é assim quando ainda só vais para Tavira, como é que vai ser quando fores para África?”

Ficámos unha com carne durante todo o Curso. 

O nº 13 sou eu.

Na fila do meio, além do Cabrita Gil, só consigo identificar o 21. Era o Carlos, de Meda, que na altura era professor primário em Murça.

Na fila de cima, com o nº 28 está o Alonso. Era um jovem endinheirado, de Vila Nova de Foz Coa, que de vez em quando alugava um táxi para ir ver a família.

Durante um exercício de campo, alguns de nós, entre os quais o Alonso, saltámos um muro para ir a um pomar apanhar laranjas, antes que apodrecessem. Despassarado como era, só quando chegou ao quartel é que o Alonso deu pela falta da baioneta, o que constituia uma falta grave. À noite, fomos em dois táxis, pagos por ele, e munidos com lanternas eléctricas, para o pomar, à procura da baioneta, que encontrámos, juntamente com mais algumas laranjas.

O comandante e instrutor do pelotão, aspirante (seria promovido a alferes pouco tempo depois) Silvério Jónatas, tem o nº 33. Já com o posto de major, andou nas páginas dos jornais pelo papel que teve em Timor, em 1975, durante as disputas entre a Fretilin e a UDT, e que lhe valeu uma precoce passagem à reserva.

À sua esquerda com o nº 34, o furriel-miliciano Moreira, monitor, que tinha uma paciência de santo para as nossas garotices.

Como se chamam os “esquecidos”? O que fazem hoje?

Não deixava de ter piada que alguns aqui viessem ter, de pára-quedas, e me respondessem.


sábado, 3 de setembro de 2011

As Patrulhas (Parte II)


(Clicar para aumentar)


Mapa do Quanza-Sul, em 1966

A - Gabela; B - Zona de confluência entre os rios Longa e Nhia; C - Dala Cachibo; D - Quirimbo; E - Nascente do rio Longa; F - Nascente do rio Nhia;

A fazenda Longa Nhia, propriedade da CADA (Companhia Angolana de Agricultura) situava-se quase no limite do Distrito do Quanza-Sul, a Noroeste, onde começava o Distrito de Luanda, próximo da confluência dos rios Longa e Nhia.

Nunca tínhamos realizado nenhuma patrulha para aquelas longínquas bandas, quando me tocou, não me lembro se por escala, ou se na circunstância fui intencionalmente “premiado” (o que de vez em quando acontecia, depois de o comando da Companhia ter sido assumido pelo capitão Carvalho, que não escondia que tinha por mim uma especial “simpatia”) com uma patrulha de quatro dias, que incluía a passagem por aquela fazenda.

Uma patrulha com quatro dias de duração era normalmente uma estopada, mas não fiquei muito aborrecido. Embora não houvesse nenhum motivo razoável que o justificasse, sentia alguma atracção pela Longa Nhia. Talvez fosse a exótica sonoridade do nome. (Acontecia-me gostar de um local antes de o conhecer, só porque gostava do nome. Por exemplo, fui três vezes em patrulha a uma localidade chamada Dala Cachibo, porque o nome me caiu no goto. Por escala, só lá teria ido uma vez: a segunda. Das outras fui por troca com camaradas que não gostavam da viagem, porque a “estrada” era péssima. Para mim também era, mas o desconforto era compensado pela simpatia dos moradores. Além disso, comia-se lá muito bem).

No fim do primeiro dia de viagem a caminho da Longa Nhia – a viagem incluía, como era hábito, visitas a outras roças e a várias sanzalas –, jantámos e passámos a noite numa fazenda cujo proprietário nos recebeu tão bem, que acabámos por aceitar o insistente convite para voltar, e almoçar quando, no terceiro dia, regressássemos da Longa Nhia. Da ementa faria parte um leitão confeccionado pelo patrão, o que, a meu ver, justificava plenamente um ligeiro desvio de percurso.



Porém, os nossos planos acabaram por sair parcialmente furados. Quando seguíamos a caminho da Longa Nhia, ao chegar a hora do almoço, encontrávamo-nos numa zona onde havia três ou quatro sanzalas a curta distância umas das outras, e que tínhamos de visitar. O pequeno almoço, reforçado como era usual, tinha-nos atrasado, pelo que não tínhamos nenhum “restaurante” nas proximidades. Mas a fome também não era muita. Apesar disso, depois de o enfermeiro distribuir os habituais comprimidos aos doentes, e de fazer alguns pensos, resolvi fazer uma paragem para petiscarmos a ração de combate.

Alimentados, voltámos ao jeep para prosseguir viagem. O condutor pôs o motor a trabalhar sem qualquer problema, mas quando meteu a primeira para arrancar, as rodas não se moveram. As mudanças entravam, mas a  viatura continuava no mesmo sítio. Vendo que não havia solução no local, já que nenhum de nós sabia como resolver o problema, consultei a carta militar e concluí que a linha férrea Gabela-Porto Amboim não devia estar a mais de doze quilómetros do local onde nos encontrávamos, e que havia uma estação – creio que era o Quirimbo – que não ficava muito mais longe.

Ultrapassada a dificuldade em me fazer entender pelos moradores da sanzala – o Português não era muito falado por lá, e o meu quimbundo andava pelas ruas da amargura – lá consegui arranjar um guia que conduziu um dos meus camaradas até à estação. A 45 anos de distância não tenho a certeza se o responsável pela estação enviou uma mensagem para a Gabela, dando conta do sucedido, como julgo que terá acontecido, ou se o nosso camarada apanhou um comboio e foi pessoalmente dar conta do recado. Esta última hipótese parece-me pouco provável, porque à hora a que ele terá chegado à estação o mais natural era já ter passado o último comboio do dia.

O certo é que passámos a noite no meio de nada.

À hora do jantar apareceram uns quantos moradores da sanzala mais próxima, que, num gesto solidário, e sem saberem que possuíamos rações de combate, nos trouxeram espigas de milho, assadas, e água para beber. Foi uma atitude inesperada, que nos deixou sensibilizados. Pela nossa parte, retribuímos oferecendo algumas das nossas rações, que eles não conheciam, explicando-lhes em que consistia o seu conteúdo, além de dividirmos com eles parte da nossa provisão de cigarros, que para eles eram uma espécie de tesouro. Pareceram contentes com a nossa oferta e retiraram-se para a sanzala. Nós dormimos ao relento.


Rio Nhia

No dia seguinte, à hora em que devíamos estar a sentar-nos à mesa para comer o leitão, chegou um Land-Rover transportando o furriel-mecânico Sousa e o 1º cabo-mecânico Claudino (“Zé da Pipa” para os amigos), cujas mãos obravam milagres na resolução das mais variadas avarias. Para aquela não houve milagre. Segundo estes especialistas, o disco de embraiagem tinha-se “descravado” e não tinha reparação possível no local, pelo que não tivemos outro remédio senão levar o jeep a reboque do Land-Rover.

E foi assim que ao fim da tarde chegámos, não à Gabela, mas à fazenda onde devíamos ter almoçado, encontrando o respectivo proprietário muito preocupado pela nossa demora. Porém, o petisco continuava à nossa espera, agora com mais dois comensais.

O leitão, temperado a preceito, tinha ido ao forno com um recheio de arroz e miúdos e, depois de voltar ao forno para ser aquecido, foi devidamente apreciado por todos.

Sou um apreciador de leitão, sobretudo quando assado à moda da Bairrada, mas, talvez induzido por aquelas circunstâncias tão especiais, continuo a achar que nunca mais comi um leitão que me soubesse tão bem.

No dia seguinte chegámos à Gabela, à hora do almoço. E eu nunca cheguei a ir à fazenda Longa Nhia. Mas fiquei com pena.