Mapa do Quanza-Sul - O círculo localiza o Assango
Embora
não me recorde da data exacta do episódio que vou contar, sei que
teve lugar em Outubro de 1966, porque pouco depois, em Novembro,
entrei de férias.
Num
fim de tarde, pouco antes de sair do quartel, fui chamado à sala do
comando, onde o capitão Soares de Carvalho se encontrava a conversar
com o chefe da polícia.
Dado
que na véspera, depois do cinema, e de termos ido aconchegar o
estômago no Bar Tropical, um pequeno grupo de furriéis de que eu
fazia parte, resolveu animar o serão “cantando” de forma
desvirtuada uma conhecida canção de Roberto Carlos, supus que
alguém se tivesse queixado.
A
canção original tinha o seguinte refrão: “Só quero que você
/ me aqueça neste Inverno / e que tudo mais / vá p'ró Inferno”.
A nossa versão era ligeiramente diferente: “Só quero que você
/ me ofereça um agasalho / e que tudo o mais / vá para o Inferno”.
Claro que embora a nossa versão não rimasse, quem ouvia ficava à
espera de outra coisa (que era o que nós pretendiamos).
Mas
a razão da visita do polícia era outra.
Um
militar do recrutamento local, a prestar serviço em Nova Lisboa, mas
que estava de férias numa pequena localidade perto da Gabela (não
tenho a certeza, mas penso que era o Assango), bebera demasiado
marufo na véspera, e a bebedeira dera-lhe para fazer desacatos,
ameaçando os brancos ali residentes, que na sua maioria viviam da
exploração de pequenos estabelecimentos comerciais (actividade que
acumulavam com a produção de café, em pequenas roças), acabando
mesmo por partir o vidro da porta de uma das lojas.
Preparando
o tronco da palmeira
Como
já era habitual nestas situações extraordinárias, fui destacado
para me deslocar ao local, averiguar o que se tinha passado e, caso
se confirmassem os desacatos, trazer o militar para o quartel para
eventual procedimento disciplinar.
Noutra
ocasião, esta diligência não me aborreceria especialmente, a não
ser pelo facto de não gostar de fazer o papel que caberia à
polícia, neste caso, militar. Acontecia, porém, que tinha sido
convidado para um almoço de aniversário, que teria lugar numa roça
próxima da cidade, justamente no dia seguinte e, com esta missão,
não poderia estar presente.
Nestas
circunstâncias, o meu estado de espírito não era dos melhores
quando saí do quartel, acompanhado apenas pelo condutor do pequeno
jeep Willys e por um primeiro-cabo, porque era preciso lugar para
trazer o “passageiro”. Fiz um desvio pela roça para informar da
minha impossibilidade em estar presente no almoço, bem como para
deixar o livro que tinha comprado para oferta, e segui para o meu
destino.
Estacas
que fixam as folhas do capim que servirão de guia à seiva até à
garrafa
Chegado
ao “local do crime”, fui “assaltado” pelos comerciantes, cada
um a querer contar as malfeitorias do desordeiro bêbado. Ouvi as
suas versões, tomei algumas notas e, acompanhado por dois deles,
segui para a sanzala à procura do militar, que tinha ido para a
“lavra” da família.
Acompanhado
pelo soba, lá fui à procura dele, que confessou logo que com a
bebida se tinha portado mal, mas que estava muito arrependido, e
disposto a pagar o vidro partido.
Por
mim o assunto ficava resolvido, mas as coisas não eram tão simples,
e eu tinha mesmo de o trazer para a Gabela, onde cheguei a meio da
tarde.
O
capitão Carvalho mandou um jeep à esquadra da PSP chamar o chefe da
polícia, que não demorou.
Lavra
de mandioca
(Foto
de autor desconhecido)
Fiz
o meu relatório e, para meu espanto, o fulano negou tudo o que tinha
dito antes. Afirmou que não tinha feito nada de mal, e os brancos lá
da terra é que não gostavam dele. Quando o confrontei com as
declarações anteriores, disse que não falava bem Português e que
eu se calhar tinha feito confusão.
Fiquei
furioso. Ainda por cima, o capitão decidiu que eu voltasse ao
Assango (?) no dia seguinte para pôr tudo “em pratos limpos”.
Mais um dia a almoçar ração de combate, porque eu já na véspera
tinha decidido não aceitar o convite dos comerciantes para almoçar.
E
aí fui eu, de novo.
Chegado
lá, comecei por lhe mostrar, de forma um tanto musculada, que ele
tinha feito muito mal em gozar com a minha cara. Depois levei-o até
ao soba, e perguntei a este onde escondia ele os barris do marufo,
cujo fabrico, na época, era rigorosamente proíbido pelas
autoridades.
O
marufo é feito com a seiva da palmeira. Começa-se por fazer um
corte no tronco e deixa-se escorrer para dentro de um recipiente.
Bebido ainda fresco, torna-se uma espécie de sumo agradável. Depois
de fermentar, transforma-se uma bebida de elevado teor alcoólico.
Enchendo
a garrafa
Começando
por negar a existência de marufo, o soba acabou, perante os fortes
argumentos que lhe apresentei, por revelar onde escondiam três
barris do valioso líquido, e conduziu-me até ao esconderijo, sempre
acompanhado pelo militar desordeiro. Expliquei-lhe então que ia
ficar sem um barril, devido ao comportamento deste, não só pela
desordem que tinha criado, mas também por ter mentido e me ter
deixado ficar mal, quando chegou ao quartel.
Disse
também ao soba que o militar ficava à responsabilidade dele
enquanto durassem as férias, pois não ia levá-lo de novo para a
Gabela. E que se eu tivesse de lá voltar por causa dele iam os dois
arrepender-se.
Entretanto,
reuni com alguns comerciantes e disse-lhes que a desordem não se
repetiria, além de que os prejuízos seriam pagos pela família do
militar. Embora algo renitentes, pois queriam ver o tipo preso,
acabaram por concordar.
De
volta ao quartel, expliquei ao capitão Carvalho – que parecia
também não estar para se aborrecer mais com o assunto – que as
coisas não tinham tido tanta gravidade como parecia inicialmente,
que o soba se responsabilizara pelo comportamento do militar, e que
os comerciantes com quem reunira, tinham ficado mais calmos.
Hotel
Guaraná em ruínas
(Foto
de autor desconhecido)
Não
foi uma coisa muito bonita, mas a última coisa que me apetecia era
andar num vai-e-vem da Gabela para o Assango, ainda por cima numa
picada em péssimo estado.
Além
de que estava farto da ração de combate, a substituir o meu almoço
no Hotel Guaraná.
Nota:
As fotos que ilustram o “fabrico” do marufo são da autoria de
Afonso Loureiro, e foram publicadas no blogue Aerograma
(http://afonsoloureiro.net/blog/)
P.S. - Coloquei mais duas fotografias do almoço em Fátima aqui
P.S. - Coloquei mais duas fotografias do almoço em Fátima aqui
Gostei do seu artigo, ate por refere coisas e terras, por mim bem conhecidas!
ResponderEliminarUm abraco gabelense.