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domingo, 23 de fevereiro de 2014

Como "nascem" os heróis


(Clicar nas fotos para aumentar)




Iniciei o ano de 2014, com a leitura de quatro livros que, cada um a seu modo, têm como tema a guerra que travámos em Angola, entre 1961 e 1974. No total, li, ou reli, “O Alferes Eduardo”, da autoria de Fernando Fradinho Lopes, “Mayombe” e “A Geração da Utopia”, ambos de Pepetela, e “Crónica de Guerra”, da autoria de Rocha de Sousa.

Terminei ontem a leitura deste último livro.

"Crónica de Guerra" baseia-se nas notas que o então alferes miliciano Rocha de Sousa, integrado na Companhia 166, do Batalhão 158, foi escrevendo ao longo dos 26 meses de comissão, entre Julho de 1961 e Setembro de 1963. Muito bem escrito, dá-nos um testemunho do que foi a dramática aventura que tantos portugueses viveram e que os marcou para sempre.


Zala

(Foto recolhida em "Aveiro e Cultura - Arquivo Digital")

Não vou, por ausência dos dotes necessários, fazer uma crítica literária à obra. Mas resolvi escrever um post a propósito do que li, por dois motivos.

Em primeiro lugar porque o texto da “Crónica” que abaixo transcrevo, vem confirmar uma teoria que defendo, pelo menos desde os anos em que cumpri a comissão de serviço em Angola, e que, basicamente, consiste na convicção de que ninguém nasce ou decide, racionalmente, ser herói. Quem andou na mata sabe que, muitas vezes, os condicionalismos que fazem de um homem vulgar, igual a tantos outros, um herói, são os mesmos que poderiam, alguns momentos antes, ou depois, transformá-lo, aos olhos dos outros, num cobarde.


Quartel do Toto

 (Imagem "cedida" pelo blogue da Companhia de Caçadores 1493)

A transcrição que faço de um dos episódios que Rocha de Sousa conta no seu livro, é esclarecedora: o herói da história, avançou, da mesma forma que podia ter fugido, tal era o medo que sentia.

Em 1967, quando me encontrava a recuperar de algumas mazelas no Anexo do Hospital Militar, em Lisboa, contou-me, um outro herói, agraciado com a cruz de guerra de 1ª classe, que reagiu numa situação semelhante à que nos relata o autor da “Crónica de Guerra”, "à maluca", por puro instinto. Ele sabia que se ninguém fizesse nada morreriam todos na emboscada que sofreram, algures nas bolanhas da Guiné. Quase morreu, ficou parcialmente inválido, mas a sua louca “valentia” assustou o inimigo, que acabou por debandar.

Sobre o furriel “herói” da Companhia 166, Rocha de Sousa escreveu:

Uma das nossas patrulhas, constituída, segundo a escala, pelo pelotão do alferes Pêgo, da 166, (…) ficou “encravada” já perto de Nambuangongo, no regresso da sua missão, batida à frente e atrás por fogo de armas automáticas, com os flancos igualmente bloqueados por tiros longitudinais, de marcação. Entre lombas, num escasso troço recto da estrada, sem dispor de relevos aproveitáveis (…) o pelotão do alferes Pêgo limitava-se a poupar munições, colado à terra, esperando qualquer aberta providencial e procurando, em conjunto, a força de sobrevivência capaz de abortar o mínimo indício de pânico. Mas era difícil sair daquela situação, gerindo apenas as munições e o tempo. Quarenta e cinco minutos bastaram para que começassem os lamentos dos mais temerosos, e para que outros, porventura igualmente temerosos, colocassem as armas acima das cabeças, disparando rajadas de descompressão e nenhuma eficácia. Logo aos primeiros devaneios deste tipo, uma das nossas armas foi batida por tiros rasantes, soltando-se em cambalhotas, enquanto o soldado que a erguera desatava aos berros, a chamar pela mãe e a clamar “ai que me mataram”. O furriel João David, tomando à letra os acontecimentos, (…) vendo os seus companheiros a fazer fogo ao acaso, sobretudo para o ar, pensou que os guerrilheiros ensaiavam um ataque final, entrou em pânico, agarrou duas armas, saltou bruscamente para diante, de pé, disparando à sua volta com as espingardas automáticas à ilharga. Ao surpreender o inimigo com a deslocação da geometria de tiro, obrigando-o a recolher-se diante da anárquica mas perigosa flagelação a que era submetido, João David abriu espaço aos seus companheiros para sairem da zona de morte na raiva de uma fuzilaria maciça, (…) dirigida aos pontos vitais da emboscada. A coberto dos trilhos, bem escondidos pela anatomia do terreno, os guerrilheiros iniciaram depressa a retirada (…). O alferes Pêgo, laboriosamente, conseguiu que os seus homens suspendessem por completo o fogo(...).

Quando o pelotão chegou a Nambuangongo, as atenções concentraram-se no “hospital”. O ferido, o soldado Ermidas, tinha o pulso direito perfurado de um lado ao outro (…). Sentado na cama ao lado, (…) para meu espanto, sorria o furriel João David, sempre com o seu bom humor sonolento e fanhoso. Tinha as mãos entrapadas. Contou-me como perdera a cabeça e como arrebatara as duas armas, disparando-as em rajadas quase contínuas. “Já sei que o Pêgo vai louvar a minha loucura” - disse ele - “mas eu quase não me lembro do que fiz, acagacei-me, e se calhar ainda me espetam com uma daquelas cruzes de herói”. Riu-se. Depois fingiu chorar, erguendo as mãos enluvadas de gaze, e lamentou: “As armas saltavam muito, estavam em brasa, e cheguei a agarrá-las pelo cano. Nem senti as queimaduras no momento” (…).”

Parece-me suficientemente elucidativo, pelo que são dispensáveis mais comentários.

O segundo motivo porque resolvi referir-me a este livro, deve-se ao facto de o autor ter andado por terras do Norte que, por coincidência, também viriam a ser o nosso habitat, quatro anos depois.


Vale do Loge

Inicialmente colocados em Zala, Nambuangongo e de novo em Zala, a Companhia 166, bem como o Batalhão 158, foram alguns meses depois (depois de um agradável – mas curto, para eles – intervalo em Ambriz), transferidos para o Colonato do Vale do Loge (que viria a ser a “sede” do nosso Batalhão de Janeiro de 1965 a Fevereiro de 1966). As outras duas Companhias ficaram aquarteladas no Toto (onde esteve a nossa Cart 739) e em Nova Caipemba. Não havia tropas na serra da Inga (onde ficou a nossa Cart 740), mas Rocha de Sousa descreve nas suas memórias uma operação de grande envergadura que ali teve lugar (que incluiu unidades de Comandos e de Fuzileiros, além de meios aéreos), mas de parcos resultados.




Quartel na Serra da Inga

 (Imagem "cedida" pelo blogue da Companhia de Caçadores 1493, que  ali substituiu a "nossa" CArt 740)

De Lucunga, onde o autor nunca esteve, faz apenas uma breve referência.



P.S. - A edição de “Crónica de Guerra”, que acabo de ler, foi editada pelo Círculo dos Leitores em 1999. Também a Contexto Editora, a publicou em 1998.

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