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Iniciei
o ano de 2014, com a leitura de quatro livros que, cada um a seu
modo, têm como tema a guerra que travámos em Angola, entre 1961 e
1974. No total, li, ou reli, “O Alferes Eduardo”, da autoria de
Fernando Fradinho Lopes, “Mayombe” e “A Geração da Utopia”,
ambos de Pepetela, e “Crónica de Guerra”, da autoria de Rocha
de Sousa.
Terminei
ontem a leitura deste último livro.
"Crónica
de Guerra" baseia-se nas notas que o então alferes miliciano Rocha
de Sousa, integrado na Companhia 166, do Batalhão 158, foi
escrevendo ao longo dos 26 meses de comissão, entre Julho de 1961 e
Setembro de 1963. Muito bem escrito, dá-nos um testemunho do que foi
a dramática aventura que tantos portugueses viveram e que os marcou
para sempre.
Zala
(Foto recolhida em "Aveiro e Cultura - Arquivo Digital")
Não
vou, por ausência dos dotes necessários, fazer uma crítica
literária à obra. Mas resolvi escrever um post a propósito do que
li, por dois motivos.
Em
primeiro lugar porque o texto da “Crónica” que abaixo
transcrevo, vem confirmar uma teoria que defendo, pelo menos desde os
anos em que cumpri a comissão de serviço em Angola, e que,
basicamente, consiste na convicção de que ninguém nasce ou decide,
racionalmente, ser herói. Quem andou na mata sabe que, muitas vezes,
os condicionalismos que fazem de um homem vulgar, igual a tantos
outros, um herói, são os mesmos que poderiam, alguns momentos
antes, ou depois, transformá-lo, aos olhos dos outros, num cobarde.
Quartel do Toto
(Imagem "cedida" pelo blogue da Companhia de Caçadores 1493)
A
transcrição que faço de um dos episódios que Rocha de Sousa conta
no seu livro, é esclarecedora: o herói da história, avançou, da
mesma forma que podia ter fugido, tal era o medo que sentia.
Em 1967, quando me encontrava a recuperar de algumas mazelas no Anexo do Hospital Militar, em Lisboa, contou-me, um outro herói, agraciado com a cruz de guerra de 1ª classe, que reagiu numa situação semelhante à que nos relata o autor da “Crónica de Guerra”, "à maluca", por puro instinto. Ele sabia que se ninguém fizesse nada morreriam todos na emboscada que sofreram, algures nas bolanhas da Guiné. Quase morreu, ficou parcialmente inválido, mas a sua louca “valentia” assustou o inimigo, que acabou por debandar.
Sobre o furriel “herói”
da Companhia 166, Rocha de Sousa escreveu:
“Uma das
nossas patrulhas, constituída, segundo a escala, pelo pelotão do
alferes Pêgo, da 166, (…) ficou “encravada” já perto de
Nambuangongo, no regresso da sua missão, batida à frente e atrás
por fogo de armas automáticas, com os flancos igualmente bloqueados
por tiros longitudinais, de marcação. Entre lombas, num escasso
troço recto da estrada, sem dispor de relevos aproveitáveis (…) o
pelotão do alferes Pêgo limitava-se a poupar munições, colado à
terra, esperando qualquer aberta providencial e procurando, em
conjunto, a força de sobrevivência capaz de abortar o mínimo
indício de pânico. Mas era difícil sair daquela situação,
gerindo apenas as munições e o tempo. Quarenta e cinco minutos
bastaram para que começassem os lamentos dos mais temerosos, e para
que outros, porventura igualmente temerosos, colocassem as armas
acima das cabeças, disparando rajadas de descompressão e nenhuma
eficácia. Logo aos primeiros devaneios deste tipo, uma das nossas
armas foi batida por tiros rasantes, soltando-se em cambalhotas,
enquanto o soldado que a erguera desatava aos berros, a chamar pela
mãe e a clamar “ai que me mataram”. O furriel João David,
tomando à letra os acontecimentos, (…) vendo os seus companheiros
a fazer fogo ao acaso, sobretudo para o ar, pensou que os
guerrilheiros ensaiavam um ataque final, entrou em pânico, agarrou
duas armas, saltou bruscamente para diante, de pé, disparando à sua
volta com as espingardas automáticas à ilharga. Ao surpreender o
inimigo com a deslocação da geometria de tiro, obrigando-o a
recolher-se diante da anárquica mas perigosa flagelação a que era
submetido, João David abriu espaço aos seus companheiros para
sairem da zona de morte
na raiva de uma fuzilaria maciça, (…) dirigida aos pontos vitais
da emboscada. A coberto dos trilhos, bem escondidos pela anatomia do
terreno, os guerrilheiros iniciaram depressa a retirada (…). O
alferes Pêgo, laboriosamente, conseguiu que
os seus homens suspendessem por completo o fogo(...).
Quando
o pelotão chegou a Nambuangongo, as atenções concentraram-se no
“hospital”. O ferido, o soldado Ermidas, tinha o pulso direito
perfurado de um lado ao outro (…). Sentado na cama ao lado, (…)
para meu espanto, sorria o furriel João David, sempre com o seu bom
humor sonolento e fanhoso. Tinha as mãos entrapadas. Contou-me como
perdera a cabeça e como arrebatara as duas armas, disparando-as em
rajadas quase contínuas. “Já sei que o Pêgo vai louvar a minha
loucura” - disse ele - “mas eu quase não me lembro do que fiz,
acagacei-me, e se calhar ainda me espetam com uma daquelas cruzes de
herói”. Riu-se. Depois fingiu chorar, erguendo as mãos enluvadas
de gaze, e lamentou: “As armas saltavam muito, estavam em brasa, e
cheguei a agarrá-las pelo cano. Nem senti as queimaduras no momento”
(…).”
Parece-me
suficientemente elucidativo, pelo que são dispensáveis mais
comentários.
O segundo motivo
porque resolvi referir-me a este livro, deve-se ao facto de o autor
ter andado por terras do Norte que, por coincidência, também viriam
a ser o nosso habitat, quatro anos depois.
Vale do Loge
Inicialmente
colocados em Zala, Nambuangongo e de novo em Zala, a Companhia 166,
bem como o Batalhão 158, foram alguns meses depois (depois de um
agradável – mas curto, para eles – intervalo em Ambriz),
transferidos para o Colonato do Vale do Loge (que viria a ser a
“sede” do nosso Batalhão de Janeiro de 1965 a Fevereiro de
1966). As outras duas Companhias ficaram aquarteladas no Toto (onde
esteve a nossa Cart 739) e em Nova Caipemba. Não havia tropas na
serra da Inga (onde ficou a nossa Cart 740), mas Rocha de Sousa
descreve nas suas memórias uma operação de grande envergadura que
ali teve lugar (que incluiu unidades de Comandos e de Fuzileiros,
além de meios aéreos), mas de parcos resultados.
Quartel na Serra da Inga
(Imagem "cedida" pelo blogue da Companhia de Caçadores 1493, que ali substituiu a "nossa" CArt 740)
De Lucunga, onde
o autor nunca esteve, faz apenas uma breve referência.
P.S. - A edição
de “Crónica de Guerra”, que acabo de ler, foi editada pelo
Círculo dos Leitores em 1999. Também a Contexto Editora, a publicou
em 1998.
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