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quarta-feira, 27 de abril de 2011

"Férias" em Luanda (Parte I)

Já me referi, aqui, às circunstâncias que levaram à minha evacuação para o Hospital Militar de Luanda em consequência de uma fractura num dos ossos do braço direito.

Volto ao tema, porque julgo que alguns dos que têm a pachorra de passar por aqui (às vezes involuntariamente) podem pensar que as cerca de cinco semanas que passei em tratamento no Hospital acabaram por se converter num período de férias caído do céu. Não os vou desiludir: foram realmente férias, mas em tempo parcial, e que, ainda por cima, eu teria dispensado porque me saíram caras.

Mas, antes de falar das “férias” vou contar um episódio quase anedótico.


Nord Atlas

Passada a guia de marcha e feita a requisição de transporte à Força Aérea (FA), apresentei-me no Aeródromo do Toto em 8 de Agosto de 1965, para seguir viagem para Luanda num desconfortável Nord Atlas.

Para as vagas destes vôos (cuja finalidade principal era o transporte de mercadorias, principalmente os chamados produtos frescos, para reabastecimento da tropa) que tinham sempre muito militares candidatos à viagem de borla - caso em que convinha que se tivessem os contactos certos -, eram estabelecidos graus de prioridade.

Tendo-me sido atribuído o grau de prioridade 1, fui o primeiro a ser chamado para embarcar pelo oficial da FA. Ora, entre os passageiros a aguardar embarque havia um oficial superior (major ou tenente-coronel, já não me recordo com exactidão), que ficou melindrado por ter sido ultrapassado na ordem de embarque por um furriel, membro de uma “casta” (perdão, classe) muito inferior na hierarquia militar.

O oficial da FA, salvo erro um tenente, explicou-lhe com o respeito devido a alguém que, embora pertencendo à classe de oficiais como ele, já tinha chegado a um nível de “casta” superior que, de acordo com os regulamentos e tratando-se de uma questão de evacuação por acidente a prioridade era, neste caso, minha. Com algum desconforto pelo incidente (realmente tanto me fazia entrar em primeiro ou em último, desde que entrasse), acabei por ser mesmo o primeiro a subir para o avião. Mas pareceu-me que o nosso oficial me foi deitando alguns olhares enviesados durante a viagem, que incluiu escalas em Maquela do Zombo e em S. Salvador.

No Hospital Militar a radiografia confirmou a existência de uma pequena fractura e, depois de terem procedido à imobilização do antebraço, fiquei em regime de consulta externa. Isso significava que tinha de providenciar alojamento e alimentação à minha custa. Enquanto em Lucunga tanto o alojamento como as refeições eram por conta do Exército, em Luanda tinha que pagar do meu bolso e, ao contrário do que muitos pensavam, não recebia quaisquer ajudas de custo.

Para fazer face a este rombo inesperado no meu orçamento mensal tive de mexer nas poupanças que ia fazendo na Caixa Geral de Depósitos.


Depósito de Adidos de Angola, em Luanda - Cinema ao ar livre

Por outro lado, não tendo ficado internado tinha, como todos os camaradas na mesma situação, de me apresentar duas vezes por dia – entre as dez e as onze, e entre as quinze as dezasseis horas – excepto sábados e domingos, no Depósito de Adidos de Angola (DAA), passando também a entrar na escala de serviços. Isto é, durante o tempo que estive em Luanda fiz três sargentos de dia à 1ª Companhia, e um sargento de dia à unidade, além de ter sido requisitado três vezes pelo Serviço de Justiça para a função de “escrivão de autos”.

Quando estava de serviço ia um jeep buscar as minhas refeições ao hotel .

Fazer serviço naquela unidade era uma provação que, apesar de tudo, consegui levar a bom termo sem consequências de maior. Alguns dos meus camaradas ficavam mesmo admirados porque, antes das refeições, eu quase conseguia que o pessoal formasse e que seguisse para o refeitório andando de um modo que se assemelhava muito à marcha militar.

A maior parte dos praças aquartelados no DAA tinham ido para Angola em unidades que já tinham terminado as comissões e regressado a Portugal, mas, porque tinham cometido infracções que levaram ao levantamento de autos (*), só poderiam regressar depois de concluída toda a tramitação dos processos, o que, por vezes, chegava a demorar anos.

Neste contexto, a indisciplina era o pão nosso de cada dia. Fazer uma formatura decente era um trabalho digno de Hércules; pô-los a marchar em condições tornava-se mais difícil do que pôr um dirigente político a falar verdade. Na situação em que estavam era-lhes indiferente mais participação menos participação, cujas consequências nunca seriam tão graves como as que iriam resultar das infracções que os tinham levado àquela situação.



Depósito de Adidos de Angola, em Luanda - Edifício do Comando

Durante esta permanência em Luanda registou-se um grave episódio de indisciplina no DAA, a que não assisti, mas que me foi contado por quem o testemunhou. Procurando pôr um pouco de ordem naquela tropa fandanga, o furriel-miliciano que estava de sargento de dia chamou a atenção de um dos soldados que não gostou da “rabecada” e o insultou. Gerou-se um conflito que acabou numa luta em que cada um dos intervenientes tirou o respectivo cinto para servir de arma. Isto perante o gáudio dos restantes militares da formatura, que não intervieram. Só a intervenção de alguns sargentos e oficiais viria a acabar com a feia briga.

Em circunstâncias que serão objecto de outro texto, em tempo oportuno, contarei como em Fevereiro de 1966 voltei ao DAA, durante quase quatro semanas. Mas tive mais “sorte” dessa vez. Estava em tão mau estado físico que o médico do Hospital Militar fez uma declaração em que me declarava inapto para fazer serviços.

(Continua no próximo post, para não cansar)

(*) Os regulamentos determinavam que apenas era vedado o regresso aos militares que tivessem de responder em “auto de corpo de delito”, mas havia quem fizesse outra leitura como se verá lá mais para diante, quando eu contar a minha própria má experiência num caso semelhante, em que um pequeno mas influente grupo, de que fazia parte o meu quarto e último comandante de Companhia, acolitado por alguns oficiais do Comando do Batalhão, tentou tudo para que eu não regressasse com os meus camaradas.

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