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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

BART 741 - Convívio em Fátima



Assinalando o 45º aniversário do regresso de Angola, terá lugar em Fátima, na Casa São Nuno, em 10 de Março, próximo, o 26º convívio do Batalhão de Artilharia 741.

O Silva Pereira, a cujo espírito solidário e perseverante devemos a regularidade com que nos temos reencontrado ao longo dos últimos 20 anos, já deve ter enviado a “convocatória” a todos os possíveis interessados.

Não estive presente nos primeiros convívios, que tiveram início em 1987, em Santarém, organizados então pelo Vítor Verdasca – um camarada sempre alegre e bem disposto, que a morte levou prematuramente – e pelo Carlos Bragança, porque o convite que me enviaram não me foi entregue, por estar desactualizada a morada.

Acabei por tomar conhecimento da realização dos encontros, por um daqueles acasos felizes, que nos alegram a vida de vez em quando.

Num fim de tarde de Maio (ou Junho?) de 1988, depois de uma visita à Feira Internacional de Lisboa, dirigia-me para o meu carro, quando, de dentro de um táxi parado na fila a aguardar clientes, ouvi o motorista a gritar repetidamente “Ó vaidoso! Ó vaidoso!”



O João Espanhol é o último da 2ª fila, a contar da esq.

Ao mesmo tempo que a minha mulher me dizia “aquele taxista está a gritar para ti!”, reconheci o João Espanhol, um dos membros da excelente equipa de enfermagem que tivemos a sorte de ter na CArt 738, e que nunca mais tinha encontrado desde o nosso regresso.

Dirigi-me a ele, sorrindo, e perguntado qual a razão para o “vaidoso”, respondeu-me, com aquele sorriso gaiato e amalandrado que nunca perdeu, que eu era vaidoso porque não ia aos convívios do Batalhão.

Esclareci-o que desconhecia a realização desses almoços, desconhecimento que lamentava, e ficou combinado que ele me avisaria quando fosse marcado o do ano seguinte, o que fez.

Foi assim que a partir de 1989 estive presente na maioria dos encontros, cuja organização, poucos anos depois, passou a estar a cargo do Silva Pereira, que prestou serviço como alferes-miliciano na CArt 739. (As suas experiências durante os meses da comissão em Angola podem, com proveito, ser lidas aqui).



Da esq. para a dta.: Magalhães (que costuma vir acompanhado de um vinho verde especial, pois não bebe qualquer zurrapa), Alves (um clarim fora de série) e o furriel-miliciano enfermeiro Fernandes (estreante nestes convívios), nas Caldas da Rainha, em 2010

Entretanto, a “velha ceifeira” pregou-nos uma partida e, egoísta, levou, demasiado cedo, o João Espanhol do nosso convívio. Quem o conheceu, sabe que o seu entusiasmo e optimismo (e às vezes um descaramento bom e são) nos fazem muita falta.

Este ano lá estarei de novo (salvo qualquer circunstância imprevista) e, mais uma vez, o tempo será curto para pôr a conversa em dia. Mas uma coisa é certa: vai ser, como sempre, um sábado muito especial.

P.S. - Um aviso à navegação: este ano vamos ter a companhia do “patrão” das transmissões da CArt 738, Morais Soares, que se deslocará do Canadá, especialmente para reencontrar velhos camaradas.

Também o Mário Abreu, furriel-miliciano do 3º pelotão, prometeu estar presente, se conseguir resolver alguns problemas logísticos.

E quem sabe se não haverá outras surpresas...


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O Acidente - Conclusão


Finda a comissão de serviço do Batalhão, o regresso a casa estava marcado para 28 de Fevereiro, e, tal como na ida para Angola, a viagem seria feita a bordo do “Vera Cruz”.

Não me recordo da data exacta da chegada do Batalhão a Luanda, mas julgo que terá tido lugar uma semana antes do embarque.

Entretanto, e depois de ter sido informado pelo advogado que referi no texto anterior, de que nada impedia o meu regresso juntamente com a minha Companhia, falei com o ortopedista do Hospital Militar, que também não levantou nenhum obstáculo de ordem clínica à viagem, devendo apenas dirigir-me em Lisboa ao Hospital Militar, para tirar o gesso, em meados de Março. Ficou combinado que me daria alta três dias antes do embarque.

Na tarde do dia da chegada do Batalhão ao Campo Militar do Grafanil, fui lá, não só para rever os meus camaradas (e fazer contas com o Rodrigues e com o Vaz, que tinham feito pagamentos por minha conta), mas também para me informar junto do alferes que estava a instruir os autos, sobre a data em que lhe convinha ouvir as minhas declarações, além de lhe sugerir o encontro com o advogado, a que também já me referi anteriormente.


Grafanil - Altar construído na base de um imbondeiro

Além disso, aproveitei para falar sobre a minha situação, quer com o primeiro-sargento Ramalho, quer com o capitão Carvalho, que me disseram, de forma taxativa, que eu não fazia parte da lista de embarque do Batalhão, em virtude de ter autos pendentes. Além disso, o capitão intimou-me a retirar da Companhia os meus pertences, que incluiam uma mala de porão.

Na CCS (Companhia de Comando e Serviços) do Batalhão, onde fora elaborada a lista de embarque, estavam colocados alguns tenentes muito experientes – tinham iniciado a sua vida militar como soldados, e foram subindo na escala hierárquica – e, julgava eu, conhecedores profundos dos meandros da legislação militar, com quem fui falar a seguir, mas que, apesar dessa sabedoria, consideravam igualmente que eu não podia embarcar.

Por outro lado, senti um clima de alguma hostilidade, tanto no comando da Companhia, como no comando da CCS. Como se eu fosse uma espécie de proscrito.

Regressei a Luanda de táxi com os meus sacos e malas, mas depois de os deixar no hotel, segui no mesmo táxi para casa do advogado, a quem relatei o que se tinha passado no Grafanil.

Acalmou-me, confirmando que, eventualmente, o meu nome podia não constar da lista do Batalhão, mas ele tinha-se assegurado de que constava da lista da 1ª Repartição do Quartel-General. Adiantou ainda que, se por qualquer baixa manobra dilatória dos meus “amigos” do Batalhão eu não embarcasse no dia 28, estaria à espera deles no Cais da Rocha, à chegada, porque ele tomaria as providências necessárias para que eu fizesse a viagem de avião nos primeiros dias de Março.


Luanda - Fortaleza de S. Miguel, vista da baía

Não deixava de ser uma perspectiva tentadora, mas eu queria muito ganhar aquela “guerra”, embarcando com os meus camaradas no dia 28.

Neste interim, prestei declarações nos autos e fiquei a saber que o condutor do jeep, tinha afirmado, mentindo no seu depoimento, que eu o obrigara a ceder-me o volante. Se vingasse essa tese, a minha situação, que já não era boa, ficaria seriamente complicada. Felizmente o testemunho dos outros dois ocupantes da viatura correspondendo à verdade dos factos, corroborava inteiramente a minha versão.

Dois ou três dias antes do embarque tive alta do Hospital, e o Depósito de Adidos passou a guia de marcha para me apresentar na minha Companhia. Chegado ao Grafanil, apresentei-me ao capitão Soares, que me disse que não valia a pena ter-me dado ao trabalho, porque a 28, enquanto o pessoal do Batalhão embarcava, eu voltaria a apresentar-me no Depósito de Adidos.

Nesse mesmo dia foram pagas as ajudas de custo de embarque, cujo valor, para a classe de sargentos, era de 3.000$00. O meu nome não constava na folha de pagamento.

Pouco depois da chegada, eu e os furriéis Miranda Dias, Mourão e creio que o Vaz, tínhamos alugado um Ford Cortina, para as nossas deslocações pela cidade. Com este aluguer poupei uma pipa de massa em táxis, porque naqueles últimos dias andei numa roda viva de um lado para o outro.

Na antevéspera do embarque, logo depois do almoço, o advogado deixou-me um recado no hotel a confirmar que eu ia mesmo embarcar. Como a bagagem de porão teria que ser colocada no cais de embarque na manhã do dia seguinte, véspera da partida, meti a mala na bagageira do Cortina e, como sempre com um deles a conduzir, fui levá-la ao Grafanil, para ser marcada e seguir, junto com as bagagens dos meus camaradas para o porto de Luanda. Não fui autorizado a deixar a mala porque o primeiro-sargento, na ausência do capitão Soares, insistiu que eu não iria embarcar.


Luanda - Capela do depósito de Adidos

Finalmente, na sexta-feira de manhã, os manda-chuvas do Batalhão e da Companhia, renderam-se à evidência: tinham perdido a “batalha” e eu ia mesmo embarcar. Ainda antes do almoço pagaram-me as ajudas de custo, mas já não podia pôr a minha mala junto com a bagagem de porão do pessoal da Companhia. Desforrei-me, talvez de forma indecente, mais tarde, em Lisboa, como poderão ler algumas linhas abaixo.

Nessa tarde andei numa roda viva. Levei a mala de porão ao cais, onde foi colocada a bordo, misturada com a bagagem de outra unidade, fiz compras, fui aos Correios mandar um telegrama para casa a confirmar que chegaria no dia 9 de Março a Lisboa, e fui pagar e agradecer ao advogado, que se revelara decisivo no apoio que me deu.

À noite, depois do jantar que ofereci a alguns camaradas mais chegados, voltei cedo para o hotel porque queria escrever algumas cartas a anunciar o meu regresso.

Estas cartas acabaram por ter um destino inesperado que só descobri quase dois anos depois, por acaso.

Como tinha de estar cedo no cais, sem tempo para esperar pela abertura dos Correios, pedi ao recepcionista do hotel que, mais tarde, mandasse um mandarete aos Correios comprar os selos e enviar as cartas. O custo total dos selos era de 12$50, e eu deixei 50$00, ficando o remanescente para beberem uma Cucas.

Quase dois anos depois, e por acaso, descobri que nenhuma das cartas fora enviada. O recepcionista e (ou) o mandarete, ficaram com os 50$00.


O navio Vera Cruz a chegar a Lisboa, transportando militares de regresso de África

O capitão Soares de Carvalho, que tinha ido comandar a nossa Companhia em rendição individual, ainda tinha ano e meio de comissão para cumprir, pelo que não regressou connosco. Antes do barco zarpar, promoveu uma reunião na sala de 2ª classe do “Vera Cruz” para se despedir dos sargentos da Companhia. Não compareci à reunião, mas o Vaz veio ter comigo à amurada, onde eu ia assistindo à azáfama do pessoal no cais, dizendo-me que o capitão me tinha mandado chamar para se despedir. Pedi-lhe que lhe transmitisse que se era uma ordem, eu iria, mas que, se não era, eu não estava interessado em me despedir dele. Não terá sido bonito, mas correspondia ao meu estado de espírito naquela ocasião. O Vaz não voltou, e mais tarde soube que ele tinha dito que não me tinha encontrado.

À chegada a Lisboa, o facto de eu não ir desfilar, por estar de braço engessado, serviu de pretexto para me encarregarem de superintender no carregamento das bagagens da Companhia, e do acompanhamento das camionetas até ao quartel do RAL 1, na Encarnação.

Como a descarga do navio ainda iria demorar, fui com alguns dos familiares e amigos almoçar ao Bonjardim, que à época servia os melhores frangos assados de Lisboa, e, quando voltei ao cais, a meio da tarde, a confusão era enorme (além de que não era nada fácil encontrar a minha mala, misturada com a bagagem de outra Companhia). Decidi então mandar regressar as camionetas ao quartel, adiando o levantamento da bagagem para o dia seguinte.


Esplanada do Restaurante Bonjardim

(Em 1967 não havia esplanada, nem sequer espaço para ela. A travessa era estreita, e passavam lá os carros eléctricos)

Quando cheguei ao RAL 1 a minha decisão não foi muito bem recebida, porque isso implicava que uma minoria, mais ou menos escolhida a dedo, residente longe de Lisboa, teria de ficar mais um dia na capital. Misturando ironia com algum cinismo (nunca disse que era perfeito), disse-lhes que pensava que iam gostar de ficar mais uma noite na civilização. Quanto aos outros, que me eram mais chegados, seguiram viagem para suas casas nesse dia, deixando-me os seus endereço. No dia seguinte, depois de voltar ao cais da Rocha para levantar bagagens, aluguei uma camioneta que transportou todas as suas malas e caixas do quartel para a estação de Santa Apolónia, onde as despachei.

Passadas duas semanas fui ao quartel pedir uma guia para ir ao Hospital da Estrela tirar o gesso. Porém, tive uma desagradável surpresa. Fizeram uma radiografia ao braço, que revelou que a intervenção em Luanda tinha sido mal feita. Em vez de reduzir correctamente a fractura, o ortopedista tinha sobreposto os ossos, deixando-os “acavalados” .

Resumindo, fui submetido a mais duas intervenções, com anestesia geral, fiz sessões de fisioterapia e acabei por ter alta onze meses depois, quando, farto do hospital, forcei a alta faltando às sessões de fisioterapia, que, de resto, quase ninguém levava a sério.

No Hospital Militar de Lisboa – Anexo de Campolide – conheci muitos camaradas evacuados dos vários teatros da guerra que, embora sobrevivendo aos ferimentos, tinham ficado seriamente estropiados. Muitos aguardavam pela viagem à Alemanha onde lhes seriam colocadas próteses; outros já tinham regressado, com próteses tão perfeitas, sobretudo nos membros inferiores, que lhes permitiam fazer uma vida quase normal, incluindo a condução automóvel.


Lisboa - Hospital Militar Principal, em foto recente

Em 23 de Fevereiro de 1968 fui a uma junta médica, que me deu alta. E foi assim que, quase 55 meses depois de ter assentado praça em Tavira, chegou ao fim a minha vida militar.

Quanto aos autos, acabaram por ter um fim de todo inesperado.

Em consequência da deslocação do papa Paulo VI a Fátima, em 13 de Maio de 1967, o Governo decretou uma amnistia geral. Nos termos dessa amnistia, os militares com autos pendentes em resultado de infracções que tivessem causado ao Estado um prejuízo de valor inferior a 3.000$00, veriam os seus autos arquivados, sem mais consequências. Nos casos em que o valor se situasse entre os 3.000$00 e os 6.000$00, os autos também seriam arquivados, desde que o infractor indemnizasse o Estado dentro de um determinado prazo.

Os danos que o desastre provocara no jeep eram, na opinião do furriel-mecânico Sousa, superiores a 15.000$00, o que me colocava fora da amnistia.

Ora, por um daqueles acasos que às vezes acontecem, tinha assumido o comando do Agrupamento do Serviço de Material de Luanda, para onde foi transportada a viatura danificada, para peritagem e posterior reparação, um oficial que eu conhecera em casa da família de uns amigos meus, de quem ele era também amigo.

Tendo tido conhecimento do que sucedera, esses amigos escreveram a esse oficial intercedendo a meu favor, e, provavelmente por sua influência, a peritagem considerou que do desastre tinham resultado danos na viatura no valor de 5.800$00. Isto é, os meus autos seriam arquivados se eu pagasse ao Estado 3.480$00. O que fiz, ficando desse modo livre de ir parar à Trafaria durante 30 dias, pelo menos.

Pode dizer-se que tive muita sorte. E, claro, fiquei com uma grande admiração pelo papa.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O Acidente - Parte II


Às primeiras horas da manhã do dia 4 de Fevereiro de 1967, aterrou na pista de aviação da CADA, na Boa Entrada, um pequeno avião que iria transportar-me para o Hospital Militar de Luanda. Para minha surpresa foi decidido que o João Magro, que, como contei no texto anterior, tinha sofrido um pequeno ferimento na cabeça, também seria evacuado, juntamente comigo. Mais tarde, viria a “descobrir” o motivo que levou à sua evacuação.


Na pista da Boa Entrada, esperava-me, além do DO 27 e da respectiva tripulação, uma luzida comissão de recepção, vinda de Novo Redondo, que era encabeçada pelo comandante da Companhia, capitão Carvalho. Surpreendeu-me que ele se tivesse dado ao incómodo de se levantar tão cedo, para fazer uma viagem de cerca de 90 quilómetros, preocupado com o meu estado de saúde (supunha eu, ingenuamente).


Boa Entrada - Hangar da pista da CADA

Porém, não era o meu estado de saúde a razão da viagem. De facto, o capitão Carvalho, quando saí da viatura que me transportava e enquanto era transportado na maca para o avião, não parou de me increpar de forma violenta. Cheio de dores, também não fui meigo na resposta, que não reproduzo, para manter a compostura (que na altura não guardei) do blogue, e que me poderia ter valido mais um auto a acrescentar aos três que já estavam a caminho.

Depois de uma viagem atribulada (enjoei o tempo todo), aterrámos em Luanda cerca das onze horas. Esperava-me uma ambulância que me fez chegar rapidamente ao hospital, onde, por ser sábado, não havia ortopedista de serviço permanente. Não foi possível contactar de imediato o médico que estava – isto é, que devia estar – de prevenção, em casa, mas que só compareceu no Serviço de Urgência depois do almoço. Soube, mais tarde, que tinha dado um salto à praia, e que só depois do regresso a casa para almoçar recebeu o recado para ir ao hospital. Parece incrível, mas foi assim mesmo. E, tanto quanto sei, sem quaisquer consequências.

Ainda hoje me recordo da agradável sensação que senti à medida que a anestesia – que antecedeu a intervenção destinada a pôr os ossos no lugar – me ia adormecendo.

Quando ao princípio da noite recuperei, perguntei ao médico, estupidamente, se tinha de ficar internado, ou se podia ir para o hotel, ficando em regime de consulta externa. Com a falta de camas que tinham quase sempre, respondeu-me que se não queria ficar no hospital não havia problema.

Saí do hospital, apanhei um táxi, e segui para o Hotel Luso. Durante a viagem para o hotel percebi que tinha feito asneira: a cada curva as dores que sentia – tinha o corpo cheio de nódoas negras – eram tão fortes, que não conseguia evitar algumas audíveis manifestações de desconforto.


Dornier 27 (aqui na pista de Lucunga) 

Ao chegar ao hotel o recepcionista, que já me conhecia, ficou espantado ao ver o meu estado lamentável. Além do braço ao peito, a minha cara, cheia de pensos e de mercurocromo, parecia uma máscara.

No dia seguinte, domingo, fiquei todo o dia no hotel.

Na segunda-feira, 6 de Fevereiro, voltei ao hospital para substituir os pensos, tendo depois ido apresentar-me na 1ª Companhia do Depósito de Adidos de Angola (DAA).

Como já escrevi aqui, os militares apresentados no DAA, deviam apresentar-se duas vezes por dia na secretaria da Companhia, além de entrarem na escala de serviço.

Quando cheguei à secretaria, entreguei ao primeiro-sargento, além da guia de marcha, um atestado médico determinando que, devido ao meu estado, não só ficava dispensado de fazer os serviços da escala, mas que também limitava as apresentações à parte da tarde, visto que todas as manhãs tinha de comparecer no hospital para tratamento.

O “nosso primeiro” ficou possesso porque, segundo ele, ninguém estava dispensado dos serviços, nem de se apresentar duas vezes por dia. Levantou-se, furioso, e foi para o gabinete do comandante com o atestado na mão. Voltou mais calmo, alguns minutos depois, dizendo que o “nosso capitão” aceitava o atestado, provisoriamente, mas que logo que apresentasse melhoras tinha de entrar na escala.

Era uma forma de salvar a face, porque, dessa vez, não fiz serviço nenhum durante o tempo que lá estive.

Entretanto, nessa segunda-feira, fui visitar o João à enfermaria, para saber como estava, e se precisava de alguma coisa. Estava óptimo, bem disposto e sem perceber muito bem o que estava ali a fazer.


Luanda - Hospital Militar

Na quarta-feira seguinte, estava na esplanada da Portugália a meio da tarde, quando um camarada me apresentou um primeiro-cabo que estava colocado no Serviço de Justiça do Quartel-General. Foi o que se chama um encontro com a sorte.

Era convicção geral, e minha também, que enquanto durasse a instrução dos três autos que me tinham sido instaurados, não poderia regressar a Lisboa, apesar de já ter terminado a comissão de serviço. Aliás, no DAA havia um grande número de militares que, findas as comissões, continuavam, alguns há mais de um ano, aguardando a conclusão de autos para embarcarem de volta.

O referido primeiro-cabo esclareceu-me que eu só não embarcaria na data prevista se, além dos autos que já tinham sido iniciados, fosse também instaurado um “auto de corpo de delito”, mas que isso só aconteceria se, em consequência do acidente, tivesse havido lesões em terceiros que implicassem hospitalização por um período igual ou superior a dez dias. Percebi nessa altura o motivo da ida do João Magro para o hospital.

Por outro lado, disse-me que trabalhava no Quartel-General com um alferes-miliciano, advogado, que a título particular, e por um preço pouco mais que simbólico, me podia dar o aconselhamento e o apoio de que eu necessitasse.

Pedi-lhe que me marcasse um encontro com esse advogado, e a seguir apanhei um táxi para o hospital, onde falei com o João, explicando-lhe que se ele não tivesse alta até ao fim-de-semana, eu não embarcaria. Ele respondeu-me que se sentia bem e que iria pedir alta no dia seguinte, o que fez realmente, tendo regressado à Gabela na sexta-feira. Estava livre do “corpo de delito”.


Luanda - Quartel-General 

No dia seguinte, ao fim da tarde, encontrei-me com o advogado, que residia com a esposa numa pequena moradia à saída de Luanda, já na estrada para o Grafanil. Confirmou que sem “auto de corpo de delito” não havia impedimento legal ao meu regresso, sem prejuízo da continuação dos trâmites legais que teriam lugar já em Lisboa. Foi-me dizendo que naquelas circunstâncias era difícil evitar uma punição disciplinar, mas que iria contactar um colega colocado no Ministério do Exército, que se encarregaria do caso, de forma a minimizar ao máximo a minha responsabilidade. Ainda assim achava que eu talvez tivesse de ficar detido por 30 dias, desde que no auto me comprometesse a indemnizar o Estado pelos prejuízos causados na viatura.

Além disso, instruiu-me sobre o teor das declarações que eu devia prestar quando inquirido pelo “oficial de justiça” nomeado, o que só iria ter lugar quando o Batalhão viesse para Luanda, poucos dias antes do embarque, sugerindo que, se o referido oficial concordasse, o levasse lá a casa para lhe dar algumas pistas legais sobre a forma mais correcta de conduzir os autos.

Entretanto, no local do acidente era efectuada a peritagem destinada a esclarecer as causas do sinistro, bem como a atribuição de responsabilidades. Nestes casos os “peritos” eram escolhidos entre os militares graduados da Companhia, bastando que tivessem carta de condução, mesmo que a experiência não fosse muita.

Na circunstância, foram nomeados os meus camaradas Rodrigues e Vaz, que tinham feito exame de condução algum tempo antes, na Gabela. Generosos, juntaram aos autos um relatório em que me atribuíam 15% de responsabilidade, pertencendo os restantes 85% às más condições do piso. O capitão Carvalho desatinou com estas conclusões, chamou-os e, ameaçando-os com procedimento disciplinar, obrigou-os a alterarem as conclusões do relatório. Refeita a peritagem, fiquei com 60% de responsabilidade.


Luanda - Cinema Império

Ainda na Gabela, quer o Rodrigues, quer o Vaz, que para me apoiar veio algumas vezes de Novo Redondo, aproveitando o facto de, sendo vago-mestre, ter algumas facilidades para se deslocar, iam tratando dos meus problemas logísticos.

No quartel, tinham ficado quase todos os meus pertences que eles se encarregaram de recolher e acondicionar numa mala de porão, que compraram a meu pedido. Regularizaram também as minhas contas, quer no hotel onde tomava as refeições, quer com a lavadeira.

Mandaram-me também a notícia digna de nota, e que eu não esperava, de que o Sr. Bernardes, proprietário da escola de condução, tinha ido ao quartel devolver parte da quantia que eu pagara, alegando que não tinha chegado a fazer exame. Não sei se haveria muita gente que, na mesma situação, tivesse o mesmo gesto.

Em Luanda, eu continuava a minha recuperação. Nos lugares públicos, era alvo da curiosidade geral (não tanto pelo braço engessado, mas sobretudo pelo rosto cheio de compressas e adesivos), de tal forma que no fim de semana seguinte, em pleno Carnaval, fui protagonista de alguns equívocos, como o daquela senhora que, no Cinema Império, veio ter comigo, felicitando-me pela originalidade da máscara que eu tinha escolhido.

Mas a saga iria continuar. Disso darei conta no próximo texto.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O Acidente - Parte I


Novo Redondo (Sumbe) - Av. Marginal 

Nada fazia prever que aquela sexta-feira, 3 de Fevereiro de 1967, seria diferente de todas as outras que tinha passado na Gabela. Até a viagem em serviço a Novo Redondo (para onde tinha sido deslocado o comando da CArt 738 há cerca de dois meses) programada para a parte da tarde, era rotineira.

Durante a nossa permanência na Gabela muitos dos meus camaradas aproveitaram para obter a carta de condução na escola local, de que o Sr. Bernardes era proprietário e instrutor. Também eu segui essa prática, tendo o meu exame, que teria lugar nesta cidade, sido marcado para o dia 10 desse mês de Fevereiro, em hora a definir.

Aproveitei a deslocação a Novo Redondo para (depois de cumpridas as diligências no quartel) me encontrar numa esplanada da cidade com o examinador, a fim de combinarmos a hora em que lhe convinha fazer o exame, enquanto bebíamos uma Cuca, acompanhados pelos três militares que me acompanharam na deslocação.

Acertada a hora, despedimo-nos e metemos rodas ao caminho.


As salinas ao abandono

Pouco depois, já na estrada, os meus companheiros de viagem começaram a meter-se comigo, insinuando que eu não sabia conduzir e que iria chumbar no exame, de nada me valendo as duas cervejas que tinha pago ao examinador. Fui dando troco no mesmo tom aligeirado, até que a certa altura, "provocado" pelo condutor que me desafiava a provar que dominava o volante, fiz a tolice de acabar por ceder ao desafio e"saltei" para o lugar dele, mas dizendo-lhe que ia conduzir só até às salinas. Nos 30 ou 40 quilómetros que distavam das salinas, o caminho era plano, com poucas curvas, e foi percorrido sem qualquer problema.

Chegados às salinas, onde começava a subida para a Gabela através de um percurso sinuoso, parei, perguntando tolamente se estavam satisfeitos. O condutor - que era o Pinóquio - secundado pelos outros, disse que até ali era fácil; a subir o morro é que se via quem tinha unhas. E eu, confirmando o ataque de tolice, continuei a conduzir.

Interrompo aqui a narrativa para esclarecer que depois de termos ido para a Gabela, nunca tinha conduzido uma viatura militar (nem civil, de resto, se exceptuar o Volkswagen da escola de condução, sempre com o Bernardes ao lado). Em Lucunga, quase todos os furriéis – eu incluído – faziam uma perninha ao volante, durante as madrugadas em que estavam de ronda (que incluía acelerar na “pista” de aviação com a emocionante curva no fim da “pista”).


O jeep do desastre ainda inteiro (e eu também)

Quando já estávamos perto da Gabela, pouco antes do desvio para a Boa Entrada, ao sair de uma curva seguida de contra-curva, a viatura entrou em derrapagem no areão que havia na estrada, aproximou-se da berma, enquanto eu procurava pôr em prática os ensinamentos do instrutor de forma a mantê-la na faixa de rodagem. Nunca saberei se o conseguiria ou não, porque o Pinóquio, assustado com o declive que tínhamos do lado direito, deitou as mãos ao volante e torceu-o para a esquerda.

É a última coisa de que me recordo até ter acordado deitado na berma da estrada, com os três a chorarem à minha volta, convencidos de que eu estava morto.

Não sei quanto tempo estive inanimado, mas depois de recuperar os sentidos, vi logo que, embora vivo, estava em muito mau estado. O meu pulso esquerdo fazia um ângulo recto; entre o nariz e o lábio superior tinha um buraco por onde se viam os dentes; o nariz estava partido; na testa tinha um buraco; na perna esquerda tinha um extensa ferida; finalmente, todo o corpo ia ficando negro.

Os outros, à excepção do João Magro, que tinha um pequeno ferimento na cabeça, apenas tinham algumas nódoas negras e um ou outro arranhão.

No meio da estrada, o jeep – que felizmente tinha a capota colocada, o que provavelmente nos salvou a vida – estava virado com as quatro rodas no ar e parecia semi-destruído. Embora na altura não fosse o que mais interessava, percebi logo que estava metido em sarilhos. O jeep, antigo, tinha sido objecto de uma reconstrução no Agrupamento de Material, em Luanda (ASMA), que incluiu pintura, motor, caixa de velocidades, estofos e capota, novos.

Algum tempo depois – a estrada não tinha muito movimento – apareceu um Volkswagen, cujo condutor parou e me conduziu, bem como ao João Magro, para o Hospital da CADA, na Boa Entrada, onde nos foram prestados os primeiros socorros.

O João nem precisou de trabalho de “costura”. A mim, porém, além da colocação de talas provisórias no braço, coseram, sem anestesia, os estragos no rosto. Confesso que com as dores que então já sentia, as picadas da agulha e o fio a passar não fizeram grande mossa.


Hospital da CADA

Acabado o tratamento de emergência, que incluiu sedativos que pouco efeito fizeram, fui transportado para o meu quarto no quartel. Dado o meu estado deplorável,  teria de ser evacuado para o Hospital Militar de Luanda por via aérea, mas àquela hora, com a noite a cair, não havia visibilidade suficiente na pista para as manobras necessárias, pelo que a evacuação apenas teria lugar na manhã do dia seguinte.

As dores não me deixaram dormir durante toda a noite mas, provavelmente, mesmo sem dores não conseguiria dormir, preocupado com as consequências do sarilho em que me tinha metido.

Como em quase tudo na vida, há um aspecto positivo que, neste caso, quero realçar: a solidariedade de uma grande parte da população da cidade que, ao longo da noite, passou pelo meu quarto, interessando-se pelo meu estado e fazendo votos de rápida recuperação.

Apesar de ter uma relação cordial com muitos dos habitantes, não esperava uma manifestação solidária tão significativa, que nunca esquecerei. Foi uma boa surpresa.