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segunda-feira, 9 de maio de 2011

As Parelhas



Ao ler o título deste texto a primeira coisa que acudiu ao pensamento do prezado leitor foi, certamente, a palavra “cavalos”. De facto, se consultarmos a maior parte dos dicionários - e se não digo todos, é porque não os conheço na totalidade - o primeiro sinónimo que encontrará é “par, referindo-se a cavalos ou muares”.

Se procurar na palavra “par”, então já encontrará o sinónimo “parceiro”.

Foi neste sentido do termo que o capitão Rubi Marques criou informalmente sub-grupos que eram constituídos por dois militares, a que deu o nome de parelhas. Todos tínhamos um parceiro que designávamos como a nossa parelha e, na prática, funcionávamos como se fossemos guarda-costas um do outro, quando estávamos em operações.



Rubi Marques e José Alves, em foto recente

Com o tempo, acabou por se criar um elo especial entre a maior parte das parelhas, que acabava por ultrapassar a duração das operações. Um dos casos mais flagrantes é o do próprio capitão Rubi Marques, cuja ligação com a sua parelha – o primeiro-cabo clarim, José Alves – perdurou até à actualidade.

A minha parelha era o soldado nº 958, Manuel de Lima Fernandes Lopes, natural do concelho de Ponte de Lima, do qual não voltei a ter notícias depois do regresso, apesar de ter feito algumas tentativas para o localizar, principalmente através de outros camaradas.

Durante o tempo que durou a nossa comissão, o Lopes teve um papel importante no meu dia-a-dia, encarregando-se de algumas tarefas pessoais para as quais eu não tinha grande apetência (para não lhe chamar preguiça, que não ficava bem), e de outras em que a minha falta de jeito era gritante. Por exemplo, a desarrumação das minhas coisas (que punha os cabelos em pé ao Nunes da Silva, meu companheiro de quarto, que tinha sempre os seus pertences em perfeita ordem) só não era maior porque o Lopes me substituia nessa (e noutras) tarefa.

Como recompensa, não solicitada, eu pagava-lhe algumas pequenas despesas proporcionando alguma poupança à sua minguada bolsa (os soldados em Angola recebiam apenas quinhentos escudos mensais, sendo que parte desse dinheiro era recebido na Metrópole, pelos familiares).

O serviço militar foi desenraizar o Lopes do seu Minho natal, e de uma calma, embora fatigante, vida no campo, onde trabalhava com os pais. Era um jovem inteligente, de uma inocência sem ponta de malícia, e sem alguns dos defeitos e “vícios” comuns a outros jovens mais vividos.


Manuel Lopes

Por exemplo, aquando da visita da terapeuta, a que me referi aqui, o Lopes pertenceu ao grupo dos que não frequentaram as suas “consultas”.

Em determinada ocasião resolvi brincar com ele, pregando-lhe uma partida. Combinei com a Ana, a minha lavadeira em Lucunga, que ela iria entregar a minha roupa lavada quando ele estivesse a arrumar o quarto. Depois, fecharia a porta e faria menção de o abraçar.

A Ana seguiu o “guião” à risca, mas quando se aproximou do Lopes, ele esquivou-se, passou por cima da cama, e saltou pela janela aberta, para a varanda, onde estava eu e mais dois ou três dos meus “co-residentes” para “gozar o prato”.

Vi logo, pela cara dele, que tinha feito asneira. E fiquei completamente sem jeito quando, logo a seguir, fui ter ao alojamento dele e o encontrei quase a chorar. Depois do mal feito, pouco mais podia fazer do que pedir-lhe desculpa e dizer-lhe que se ele não quisesse voltar a fazer aqueles pequenos (mas importantes para mim) serviços, eu compreendia.

Fosse pelo meu arrependimento, ou por qualquer outro motivo, o certo é que ele continuou a dar-me o seu precioso apoio.


A "minha" secção

Em baixo, da esq. para a dta.: João Palhares, Manuel Lopes, Brandão Pacheco e Albino Marinho
Em cima, da esq. para a dta.: Manuel Morgado, Carlos Fonseca, Casimiro Cerqueira e Armindo Pacheco

Um outro episódio que ele protagonizou podia ter acabado mal.

O meu pelotão tinha sido escalado para fazer uma emboscada numa mata situada sensivelmente a meio caminho entre o rio Cogi e a estrada Lucunga/Damba, onde permaneceriamos quatro noites e quatro dias.

Quando faziamos batidas, levávamos apenas um cantil com capacidade para um litro de água, que iamos reabastecendo, nos cursos de água que encontrávamos no caminho, ou mesmo em charcos onde os animais também se dessentavam. Nas emboscadas, em que ficávamos sempre no mesmo local, levávamos um cantil para cada dia, pelo que, neste caso, levámos quatro cantis cada um.

Com a alta temperatura, habitual naquela zona, a água tinha que ser racionada, pelo que estávamos quase sempre em carência, e com uma sensação de secura na boca.

No fim da tarde do terceiro dia um dos camaradas da minha secção veio dizer-me que o Lopes estava a passar mal, e que já não tinha nem uma gota nos cantis que levara. A maior parte dos outros também já tinha encetado o quarto cantil. Acompanhado pelo comandante do pelotão fui ter com ele e concluí que se não lhe acudíssemos entraria rapidamente em desidratação.

Dei-lhe o meu cantil com o resto da água que tinha para esse dia, e que ele foi bebendo aos poucos. Melhorou, mas punha-se o problema de termos ainda uma noite e um dia pela frente. Eu tinha levado quatro latas de sumo de fruta, que eram fabricadas na África do Sul e vendidas na nossa cantina (ou seria na loja do Sr. Santos?). Ainda tinha três, que lhe fui dando e, entretanto, ele parecia recuperado.




Poncho semelhante aos que usávamos em Angola

Entretanto, alguém – não me recordo quem – levantou a ideia de atarmos os ponchos (impermeáveis) às árvores de forma a tentarmos recolher a água da chuva, que por certo cairia, como tinha caido nos dias anteriores. Assim fizemos e, embora os ponchos utilizados não tivessem armazenado muita água, foi a suficiente para juntamente com o racionamento da que ainda restava nos nossos cantis, levarmos o barco a bom porto.

O Lopes aprendeu a lição, e nunca mais lhe faltou a água. Isto é, faltar, faltou, como nos faltava sempre que andávamos pela mata ou no meio do capim, com as praganas a entrarem pelos pescoços suados, ansiosos por um riacho, onde entrávamos vestidos e calçados, ou ao menos por uma sombra, onde pudessemos descansar cinco minutos.

Falta dizer que, durante todo o tempo que durou a nossa aflição, não pudemos pedir ajuda, porque, apesar de termos levado rádio e o respectivo operador, não foi possível, mais uma vez, pôr o aparelho em funcionamento.

Termino com um pedido. Se alguém souber do Lopes ou da forma de o contactar, agradeço que me informe, ou através da caixa de comentários, ou para cart738@gmail.com.

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