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sábado, 31 de dezembro de 2011

O Baile Falhado


Vila Teixeira de Sousa - Rua Principal
(Foto de Armando Monteiro)

Em 1966, a passagem de ano na Gabela esteve longe de ser das festas mais animadas que por lá se viveram. Respirava-se por esses dias um clima de grande emoção e revolta em Angola, em consequência das notícias veiculadas pelos meios de comunicação, que davam conta do “nefando assalto” perpretado na noite de Natal por um grupo de terroristas da UNITA, à localidade Vila Teixeira de Sousa.

Abro um parêntesis para esclarecer que o ataque acabaria por fazer duas vítimas civis, entre os moradores locais (um civil e um agente da PIDE), e algumas dezenas entre os atacantes.

Segundo o testemunho de camaradas com quem conversei poucos dias depois, em Luanda, e que se encontravam no quartel que era o objectivo do ataque inimigo, os atacantes dificilmente poderiam ter sido mais desastrados no planeamento da “operação”.

De facto, além da Companhia a que pertenciam esses camaradas, que ia ser rendida por ter chegado ao fim da comissão de serviço, encontravam-se também no quartel os militares da unidade que os ia render. Isto é, havia segurança reforçada.

Por outro lado, a força atacante estaria mal armada e a maioria dos seus membros apresentava-se em manifesto estado de embriaguês.

Porém, a população angolana de origem europeia, que ignorava estes pormenores, ficou indignada, revoltada e também alarmada com as notícias dos jornais e das rádios, pelo que as manifestações de repúdio alastraram por todo o território, gerando um movimento de solidariedade para com a população de Teixeira de Sousa, que se concretizaria no envio de um comboio com os mais variados bens de consumo destinados às populações alvo do “ataque”.

Também na Gabela houve uma manifestação largamente participada, tendo as autoridades civis feito os habituais discursos de desagravo, seguidos da recolha de donativos.


Um dos morros que rodeiam a cidade da Gabela
(Foto recolhida na Internet, de autor desconhecido)
Por outro lado, ganhou corpo entre a população gabelense uma onda de receios, com origem em boatos, segundo os quais elementos subversivos vindos do exterior estariam a sublevar parte da população africana da zona que, sob a sua orientação, estaria a preparar um ataque à cidade na noite da passagem de ano.

De nada valeram as tentativas para acalmar os ânimos, explicando que nas informações recolhidas pelas nossas patrulhas que, naturalmente, se tinham intensificado, não havia o menor indício de que algo de anormal estivesse em preparação.

Perante estas circunstâncias, teve lugar uma reunião em que estiveram presentes as autoridades civis e militares, que decidiram pôr em prática um plano de defesa da cidade, que consistiu na criação de postos de vigilância fixos, constituídos por militares e civis em diversos locais dos morros que rodeavam a cidade, a que se juntaram patrulhas móveis. De reserva, no quartel, estava um piquete pronto para intervir.

Apesar dos receios existentes, não foi cancelado o habitual baile de fim de ano na ARA-Associação Recreativa do Amboim. Porém, em lugar de um conjunto musical (que, salvo erro, viria de Nova Lisboa), o baile que, ainda assim, teve alguma afluência, foi “abrilhantado” apenas com música gravada.


Gabela -Contacto 7  
(Conjunto formado por jovens estudantes do ensino secundário, formado em data posterior a 1966)

((Foto "roubada" ao Mazungue ( www.mazungue.com/ ))

Nessa noite eu fiquei incumbido de fazer a ronda aos postos de vigilância entre a meia-noite e as duas da madrugada. No entanto, não podia desperdiçar a ocasião de estrear o fato que tinha mandado fazer especialmente para este baile, pelo que não deixei de comparecer na ARA , onde dancei até à meia-noite menos um quarto. A essa hora, conforme combinado, tinha o jipe da ronda à porta, e fui ao quartel fardar-me e dar início ao “trabalho”.

Duas horas depois, voltei a vestir o fato e regressei à ARA. Desilusão: o baile já tinha acabado, num morno ambiente de fim de festa, segundo me contaram.

Por sugestão de um camarada, ainda fomos - quatro ou cinco - para a Boa Entrada, na esperança de que a festa no clube da CADA (Companhia Angolana de Agricultura) estivesse mais animada. Batemos com o nariz na porta, porque também por lá o clima não era diferente, e o pessoal já tinha ido dormir.


Clube da CADA

(Foto de Sofia Peixoto)

Foi assim a nossa festa, falhada, de passagem de ano, de 1966 para 1967, na Gabela.

É claro que, como prevíramos, ninguém atacou coisa nenhuma. Os supostos elementos subversivos, estavam era a divertir-se à grande nos seus batuques, até de manhã, que bem os ouvíamos nos nossos quartos.

Enfim, não perdi tudo, pois sempre estreei o fato de alpaca, feito pelo alfaiate local, Sr. Marchante.

E este seria o meu último baile na ARA. Uma semana antes do Carnaval sofri um grave acidente de viação e fui evacuado para Luanda. Uma história para contar mais tarde.

4 comentários:

  1. Caro Fonseca:

    Como sempre, uma interessante narração de uma não menos interessante recordação!
    Por razões diferentes - que hei-de contar, um dia - recordo-me perfeitamente desta passagem de ano, já em Benguela mas de serviço ao quartel.
    Ainda bem que regressou aos seus "postais".
    Votos de um excelente 2012, para si e seus Familiares.
    Silva Pereira

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  2. Agradeço o seu amável comentário, bem como os seus votos para 2012, que retribuo.

    Fico grato igualmente pelo registo positivo que faz do meu regresso a estas lides.

    De facto, nunca tinha estado tanto tempo sem publicar um texto, mas, por vezes, outros valores se impõem, obrigando-nos a sair das nossas rotinas, o que foi o caso.

    De resto, (para o bem, ou para o mal) a falta também não foi muito notada.

    Um abraço do

    Carlos Fonseca

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  3. Caríssimo primo e grande amigo Carlos,
    Tanto a Mindocas como eu, achamos que não deveríamos deixar de protestar contra a ultima frase da tua resposta ao Veterano. A falta dos teus "postais" foi muito notada, não só por por nos aqui em baixo, mas por esse mundo fora. Nos, no entanto, estávamos ao par das razoes da ausência das tuas cronicas, dai o nosso silencio. Ler o teu blogue ajuda-nos a matar um pouco a saudade que temos da nossa família e do nosso pais.
    Por outro lado, durante todo o mês de Dezembro, a preocupação relacionada com as despesas inerentes a época, deve ter contribuído para a falta de contacto por parte dos teus leitores.
    Embora todos saibamos o que nos espera em 2012, enquanto tivermos o teu blogue, não há crise que nos assuste.
    Bem hajas Carlos.
    Um abraço aqui dos morcegos.

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  4. David/Mindocas, meus primos e grandes amigos!

    A temperatura desse longínquo Verão australiano deve estar a fritar-te o cérebro, o que conjuntamente com a tua amizade e a elevada dose de generosidade com que foste dotado, justificam o exagero do teu comentário, que substituiu, com larga vantagem, todos os comentários que ficaram nos teclados espalhados por esse Mundo fora.

    A última frase do meu comentário, não vos era destinada (nem ao Veterano, que sabia as razões da minha ausência). Em boa verdade, não se destinava a ninguém em especial. Foi apenas a constatação de uma realidade. Isto é, escrevo sobretudo para mim; por acréscimo, “visitam-me” cinco ou seis amigos, e, diariamente, mais umas dezenas que aparecem por cá, involuntariamente, trazidos pelas buscas do Google.

    Abreijos para vocês.

    Carlos

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